3. Os Olhos de Yhari - Penúltima Parte.

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Morga aproximou-se e voltou a colocar as mãos sobre as de Serunte:
— Era bom viver na Terra?

O Fhar aquiesceu, sem acrescentar mais nada. A lembrança do tempo passado tornou-o triste e melancólico.

Morga fechou os olhos:
— Não sei imaginar outro planeta. Eremia disse que há um sol grande e uma lua de prata.

— A Terra tinha todas as cores do arco-íris — contou o Fhar.

— Arco-íris? — repetiu a jovem maga, fazendo uma careta engraçada.

— É uma alquimia que se dá no céu. O arco-íris é belo como sua mãe. É belo como você. — Serunte percebeu que tinha se deixado levar pelo romantismo e enrijeceu-se, apertando os punhos.

— Se eu sou bela como a mamãe, o que foi que puxei de você? — Finalmente, Morga conseguiu sorrir.

— Seguramente, a força e a magia. Você aprendeu a usar e a escutar o vento. Sabe ver e sentir a natureza falando com você. Eu sei que você também escreveu uma poesia dedicada ao vento. Você é uma criatura esplêndida, e Eremia a ajudou, ensinando-lhe nossa arte alquímica, dos Fhar. — O pai se aproximou e finalmente acariciou-lhe os cabelos ainda úmidos.

Aquele carinho não arrancou de vez os espinhos que Morga levava cravados no coração havia 12 anos, porém aplacou sua raiva.

— Pai, o que será de mim?

— O vento sabe do destino. O seu vento. E eu estarei ao seu lado. Sempre. — O Fhar virou-se para o Obolho, que esguichava vapor, e abriu a primeira das quatro portinholas de cristal.

Morga pensou que ele iria mostrar-lhe alguma mensagem escrita no Ciodalo, porém estava enganada. Serunte extraiu dois tubinhos de papel e, com gesto hábil, desenrolou o primeiro.

— Este é um documento secreto importante, como o que você encontrou. É o pacto que nós, Mestres da Vida, selamos quando chegamos a Emiós. Leia-o e entenderá o que eu ainda não disse — falou, entregando-o à filha.

Planeta Emiós
Galáxia Esperimea. Sistema solar do Bromo
Megorá, auditório de Áurea Nyos - Ano 1

O PACTO DOS FHAR

Estamos aqui reunidos na Megorá, o grande auditorium de Áurea Nyos, para celebrar o primeiro aniversário da nossa tomada de posse no planeta Emiós. Assumimos o compromisso de prosseguir as nossas pesquisas mágico- científicas para produzir e aperfeiçoar a fórmula alquímica da eternidade, a Shaal Tuak-Pà. Eremia, nossa sábia Bramante Branca, já está com a pesquisa bem adiantada, mas para conseguir honrar o destino solicitou viver longe de Áurea Nyos, numa casa no meio da Floresta de Samhar, junto ao oceano Orhanto. O Grão-Medônio Okrad, pelo qual todos nutrimos grande respeito, autorizou Eremia a isolar-se para aperfeiçoar seus dotes xamanísticos. Nós somos a nova raça imortal, e a partir de hoje nos chamaremos Fhar, em memória do professor Dan Fhar, que se sacrificou para alcançar o sonho da vida infinita. Os seus ensinamentos, os livros sagrados, as fórmulas mágicas e as descobertas científicas acompanharão nossa história. Nos séculos futuros, aperfeiçoaremos as técnicas alienantes e mágicas, sem envelhecermos, afastando assim o espectro da morte.
Jamais a Terra poderá ser mencionada, já que provocou tamanho sofrimento. Jamais os mil Supérstites e os que nascerão no futuro deverão ter a oportunidade de transmitir a cultura humana. Nossos experimentos com o DNA deles estão dando ótimos resultados e, nos anos vindouros, eles garantirão nossa vida, trabalhando e produzindo alimentos. Os Supérstites são "utilmente perfeitos" e nos servirão apenas alcançarmos nosso objetivo: o de vivermos para sempre. Ao completarem 50 anos de idade, homens e mulheres serão levados para a ilha Límbia, única ilha do planeta Emiós, com a promessa de se tornarem eternos como nós. É um engano que precisamos manter! A morte deles é necessária, já que a modificação genética realizada em seus corpos através do gene mágico Désio-Z206 não lhes permite viver além disso.
Mas nós poderemos garantir nossa imortalidade permanecendo os únicos detentores da fórmula eterna. Num prazo de um ano apenas, conseguimos construir um mundo racional sem sentimentalismos e paixões perigosas. O amor leva à imperfeição e à infelicidade. Os Supérstites perderam qualquer lembrança de suas origens humanas graças às nossas poções. Os "utilmente perfeitos" agora sabem que pertencem a novas categorias: os U'ndários (homens e mulheres estéreis), as Gestais (mulheres procriadoras) e as Ancilantes (seres gentis e prestativos).
Em breve, dez Gestais parirão graças à fecundação ocorrida com o Raio Avólio, de nossa invenção. Nascerão crianças novas, os primeiros Dakis.
Os recém-nascidos que apresentarem DNA exclusivamente humano ou defeitos genéticos ou físicos, definidos como "Imperfeitos", serão eliminados imediatamente. Até mesmo uma única criatura com sentimentos humanos para o nosso poder. Nenhum de nós terá incertezas. Em Emiós, a vida será ordenada pela nossa Imperalei, único meio para manter o equilíbrio entre nós e os "utilmente perfeitos". Nós somos o futuro. Nós seremos para sempre. Nós somos os Mestres da Vida. Este é nosso pacto indissolúvel!

Documento confidencial do 1º Conciliábulo dos Fhar.

Perplexa e desorientada, Morga apertou o documento entre as mãos como se quisesse destruí-lo e dirigiu-se ao pai com veemência:
— A ilha Límbia é o lugar da morte! Horrível, diabólico. Emiós oculta um inferno, e vocês, Fhar, são criadores de sofrimento e de luto. Vocês são Mestres de Morte, não de Vida!

A garotinha estava sendo arrastada por um terremoto de emoções. Ela intuiu o porquê de se sentir atraída pelo oceano Orhanto quando subia na árvore nodosa: lá, em meio à maré negra, localizava-se a ilha Límbia, e a embarcação que ela vira navegando era, portanto, a barca da última viagem em direção à morte. Os seus pensamentos embaralhavam-se como fios elétricos. Tudo nela estava se rebelando: nervos, músculos, sangue e coração. Ela abriu a boca para respirar e afugentar a angústia que a dominava.

Serunte levantou-se da poltrona e abraçou-a com muita força. Apertou-a sem dizer nada. O rosto de Morga encheu-se de lágrimas, encostado na túnica azul. Chorou sentindo os batimentos cardíacos do pai.

Uma lufada de vento atravessou o abraço e atingiu a ambos como um punhal invisível: unidos, próximos como nunca haviam estado, juraram silenciosamente não se deixarem nunca mais.

A porta do Panacedarium abriu-se inesperadamente. Eremia entrou e voltou a fechá-la logo. Um tremor a fez cambalear: ela não estava preparada para ver a cena de pai e filha abraçados silenciosamente.

Serunte se recompôs; estava com os olhos vermelhos porque não conseguia chorar.

— Eu causei sofrimento à minha filha e não posso suportar mais o meu papel de Fhar.

Morga secou o rosto e, virando-se para a Bramante, disse:
— Agora, eu sei. A raiva que sinto é pior que veneno.

Eremia, que ainda estava usando a Kaplá, levou as mãos à cabeça calva.

— Não podíamos poupar você da verdade. Era justo que você soubesse.

O pai repôs rapidamente a máscara, voltou a fechar a primeira portinhola do Obolho e entregou o segundo tubinho de papel para Eremia, dizendo:
— Este é você quem vai ler para ela.

Olhou novamente para Morga e, antes de ir embora, falou:
— Ouça bem Eremia. E prepare-se, deve ir à Colônia Briosa. Você não pode mais ficar aqui. Estarei ao seu lado mesmo que você não me veja.

O Fhar saiu, fazendo seu manto azul esvoaçar.

A garotinha permaneceu de boca aberta e sentiu a mágoa do abandono repentino do seu pai infiltrar-se em seu âmago: era como se um emaranhado de Serpentes Bífiles do deserto de Alfásia estivesse se mexendo dentro do seu estômago.

Fim da Penúltima Parte.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora