1. A Confissão da Bramante Branca - Primeira Parte.

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Floresta de Samhar
Estação Medra - 3º dia do ano 500
Temperatura: 18 graus
Lua azul noturna

Imóvel, encolhida entre os galhos secos como se estivesse de castigo, fitava Orhanto, que do alto da grande árvore nodosa parecia ainda mais distante e inalcançável.

Mais negro que o céu noturno, com aquelas águas mortas que não deixavam aparecer nenhuma onda, nem sob os raios da lua azul, o oceano de Emiós parecia um gigantesco manto de veludo.

Os olhos semelhantes a enormes pétalas azuis escrutinavam o horizonte, procurando uma saída para fugir da angústia que nem mesmo as sementes calmantes de Cilando poderiam aplacar. Era uma ansiedade que palpitava a cada batimento cardíaco: temores e sensações rondavam o silêncio da Floresta de Samhar.

Morga, que acabara de fazer 12 anos, deixou o vento despenteá-la. Seus cabelos cor de piche chicotearam seu rosto marcado de minúsculas sardas roxas que salpicavam sua pele macia e branca como a areia do deserto de Alfásia.

Ela não tinha medo do escuro, pelo contrário, a escuridão era o berço dos seus pensamentos. Morga gostava de refugiar-se à noite naquele canto silencioso, pendurada nos galhos da Quercus Alba, a maior de todas as árvores nodosas do planeta. Os cheiros e os rumores da natureza eram uma linguagem imediata que a deixava à vontade e conseguia tranquilizar seu espírito irrequieto, vivaz e curioso. Tinha um jeito diferente dos outros Dakis, que ela jamais vira na vida. Entretanto, eles podiam viver na Colônia Briosa, frequentar a cidade de Karash, brincar e trabalhar junto com os adultos, os U'ndários que moravam nas Leiterias Tortas da cidade de Wolmida.

Morga, não!

Ela nunca estivera naqueles lugares. Essa proibição fora explicitada quando sua mãe, Animea, lindíssima Gestal do Mosteiro de Hamalios, decidira levá-la secretamente, recém-nascida ainda, para a Casa de Eremia, a Bramante Branca dos poderosos Fhar, governadores absolutos do planeta Emiós.

Eremia aceitara correr o risco de ficar com a menina e educá-la de acordo com as regras férreas da alquimia e da magia alienante. Animea deixou o fruto do seu amor aos cuidados da Bramante, suplicando a ela que não a entregasse aos Fhar e não revelasse quem era o pai.

Contudo, com o passar dos anos, as coisas foram se complicando, e a Gestal foi obrigada a abrir mão das viagens para visitar a filha, porque os Fhar aumentaram a fiscalização na Área Krop-0, principalmente no Mosteiro de Hamalios. As sentinelas, criaturas fidelíssimas aos governadores, atuavam como espiões sempre alertas e conseguiam atravessar as paredes graças ao seu corpo feito de fumaça e vapor. Tinham condições de captar o menor deslocamento das Gestais e comunicá-lo com precisão.

Com isso, Morga conhecera muito cedo o sofrimento e o isolamento. A falta da mãe provocara-lhe tamanha raiva que a rebeldia brotou em seus nervos e em seus olhos. Havia dois anos que ela saía quase toda noite e, como um animal ferido, trepava na árvore nodosa mais alta da Área Krop-6X na esperança de vê-la chegando em sua suntuosa Vádria vermelha, a carruagem voadora das Gestais. Não obstante, seu desejo era inexoravelmente frustrado.

Eremia sabia perfeitamente que Animea não podia ir ver a filha e temia que acontecesse algo de grave a essa garotinha tão especial e tão perigosa para o equilíbrio do planeta inteiro.

Mas o vento, as correntes de luz, a órbita das três luas e o cheiro dos seixos indicavam de forma sutil que o mundo dos Fhar estava em decadência. O destino de Emiós estava mudando, Morga podia senti-lo.

Fim da Primeira Parte.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora