4. Os Ambalis e a Antiga Profecia - Décima Terceira Parte.

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— Está errado. Eu espero que um dia você e muitos outros comecem a fazer perguntas a respeito de como se vive aqui em Emiós. Agora, porém, não quero falar dessas coisas; precisamos ir, a noite se aproxima e a viagem será cansativa. A temperatura está caindo ainda, acho que daqui a pouco vamos chegar a 30 graus negativos. Wapi precisa ser tratado e ficar no calor.

O U'ndário observou o Piróssio e pensou mais uma vez em Eremia: invadiu-o a desconfiança de que a Bramante Branca também estivesse envolvida nessa estranha história.

Bufando, respondeu:
— Está bem, vamos. Eu vou à frente, fazendo luz com o Corcundoso.

— Luz com o cajado? — duvidou Morga.

Gardênio segurou a ponta do Corcundoso sobre o fogo e a chama começou a arder.

— Mas ele não vai queimar; foi feito de propósito para se tornar uma tocha quando necessário.

O U'ndário barbudo lançou neve sobre a fogueira, apagando-a, e se pôs a caminho com passo decidido, seguido por Morga e Wapi.

A lua branca iluminou a caída da noite. O rumorejar da cachoeira e o ulular das feras acompanharam ainda por um breve tempo a viagem dos três rumo à Colônia Briosa.

Seguiram as margens do rio Hamandor passando por entre montes de gelo e rochas íngremes e, depois de cerca de uma hora de caminhada, o fulgor das grandes lanternas penduradas nas casas dos Dakis assinalou finalmente que estavam chegando.

Já passava das dez da noite e, àquela altura, a maior parte dos trezentos garotinhos já dormia. E, com o frio que fazia, ninguém mais sairia. As Gestais admitidas na Colônia para cuidar dos jovens Dakis estavam reunidas junto com as Ancilantes de plantão e conversavam em seus apartamentos.

Gardênio estacou, fincando o Corcundoso no chão e, virando-se para Morga, deu lhe algumas explicações:
— Todas as habitações dos Dakis ficam uma do lado da outra e, como você pode ver, o conjunto inteiro é em forma de U. As mulheres ocupam o lado leste, os homens, o oeste. No centro ficam os apartamentos destinados às Gestais, Ancilantes e U'ndárias, que chegam aqui em turnos. Lá no topo há três cúpulas de vidro vermelho, que agora estão recobertas pela neve, que são ocupadas pela Pramaga Telkia e pelo Pramago Lefório, com suas respectivas Sentinelas. De qualquer maneira, Telkia não está nestes dias. Ela permaneceu em sua torre, em Áurea Nyos.

— Lefório? — perguntou a garotinha, que não se lembrava de quem era.

— É o Fhar responsável pelas Poças de Esmerilha e as Minas de Ambrioso — esclareceu Gardênio.

Morga sentiu-se atraída pelas lanternas, que eram enormes e iluminavam a Colônia inteira: as casas eram coloridas, os pórticos, sustentados por grossas colunas ornadas de rendas, e as janelas tinham vidros fumê. Fumaça saía das chaminés, e a garotinha imaginou lareiras e salões acolhedores onde se pudesse descansar. Ao pensar em Yhari seu coração estremeceu, e Morga olhou fixamente para a ala oeste, onde algumas das janelas das casas habitadas pelos garotos ainda estavam iluminadas. Um pensamento doce atravessou sua mente: "Ele está em um desses apartamentos. Logo voltarei a vê-lo."

Ao longe conseguiu ouvir as risadas dos Dakis aconchegados no calor. Com o coração apertado, recordou-se do seu quartinho na casa de Eremia. Imaginou a Bramante sozinha com suas ampolas e alambiques.

O lamento de Wapi, que já não se aguentava mais de cansaço e frio, sacudiu Morga, que lhe fez um carinho. O amigo branco abria o bico pelo excesso de fome.

— Gardênio, onde é que vou morar? Wapi vai poder ficar comigo? — perguntou, tiritando de frio.

— Serunte mandou levar você para a Casa 299, na água-furtada — respondeu ele, tossindo.

— Água-furtada? — Cansada e desorientada, Morga surpreendeu-se ao saber que seu pai havia decidido fazê-la morar numa água-furtada poeirenta.

— Sim, está desocupada. O restante da casa está inutilizável. É por isso que ela não está habitada, e acho que você poderá levar também o seu Piróssio. — O U'ndário se deu conta de que a garotinha estava com o nariz congelado e que o avestruz quase não conseguia mais levantar as patas.

A passos lentos alcançaram os fundos da ala leste do enorme edifício. A Casa 299 era a penúltima. O portão verde-escuro não estava iluminado: a lanterna estava quebrada. Gardênio empurrou-o, abrindo-o sem dificuldade, até porque a fechadura estava enferrujada. Wapi entrou primeiro e, naquele instante, duas luzes avermelhadas apareceram no horizonte: voavam a meia altura e provinham de Karash, a cidade próxima, repleta de pequenas lojas atraentes para os Dakis.

Gardênio arregalou os olhos.

— Só faltava essa. São duas Kombas que estão dirigindo para cá.

— O que são Kombas? — quis saber Morga.

— Não faça perguntas e entre na casa. — Gardênio empurrou-a para dentro e, em poucos segundos, as luzes vermelhas desceram do alto, apagando-se ao tocar o solo gelado.

A garotinha espiava pela fissura do portão, que permanecera semiaberto. Com enorme surpresa, ela verificou que as Kombas não eram nada mais que meios de transporte: pareciam grandes ovos de Piróssio, com duas asas metálicas nas laterais.

As Kombas aterrissaram deslizando, e eles puderam entrever duas figuras pelas escotilhas laterais: eram Dakis. A portinhola da primeira Komba abriu-se.

— Salve, Gardênio, você acabou de chegar de Áurea Nyos? E o que está fazendo aqui?

Era Horp, que se recompusera muitíssimo bem da viagem para buscar as mercadorias. Tinha um sorriso nos lábios, e os cabelos pretos e encaracolados escondiam-lhe os olhos verdes e rebeldes.

— Eu... na verdade... eu estou aqui para... verificar! Sim, estou verificando a lanterna da Casa 299. Como pode ver, está quebrada. — O U'ndário conseguiu se sair bastante bem.

A portinhola da segunda Komba se abriu, e a cabeça de Yhari despontou:
— Gardênio, mas você não para de trabalhar!

Morga sobressaltou-se: Yhari estava bem diante dela. Desencostou um pouco o portão para vê-lo melhor.

Fim da Décima Terceira Parte.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora