1. A Confissão da Bramante Branca - Oitava Parte.

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De susto, Wapi enfiou a cabeça debaixo das plumas, enquanto Eremia permanecia parada, sem interferir.

— Que mundo é este! Você me manteve prisioneira! Não posso ver ninguém. Mas eu existo! E, agora, meu pai também vai ter de se haver comigo. — A violência de Morga abria caminho como a erupção de um vulcão.

A Bramante fechou a janela, voltou a acender as velas com um gesto e cruzou os braços.

— Você é diferente de todos, e a sua diferença também me modificou. Quando você era pequena, eu abraçava você e sentia que o batimento do seu coração se somava ao meu. Quando você falou pela primeira vez, nós estávamos no Panacedarium; eu segurava uma ampola de Amônio Combinado, que deixei cair por emoção, e você riu. Sim, há pequenas coisas que são mais importantes que qualquer poder mágico. Eu lhe quero bem. E dizer isto para você me custa caro. Raciocine sobre o que estou lhe dizendo. Pense bem. — Eremia afastou-se, fazendo esvoaçar seu vestido, abriu a porta e desceu as escadas sem se virar sequer uma vez.

Morga permaneceu em silêncio, prendendo a respiração. Wapi levantou-se da esteira e aproximou-se dela, abaixou o pescoço e esfregou o bico sobre os seus ombros.

— Eu não sou como os demais. Tenho um... defeito. Estou errada... como você, Wapi. As suas penas são cândidas, enquanto os outros Piróssios nascem louros. Eu choro e tenho sentimentos fortes e você consegue compreender, embora não fale. Em suma, segundo os Fhar, nós dois não deveríamos viver. — Confusa, magoada e desesperada como estava, Morga ainda precisava compreender muita coisa, e a verdade apresentava-se como uma montanha de gelo que era preciso escalar.

Ela subiu correndo para o segundo andar, atravessou a comprida biblioteca e entrou em seu quarto, seguida por Wapi, que oscilava.

Olhou-se no espelho.

— Morrer! Eu devia morrer. Desaparecer no nada porque eu tenho sentimentos? Mas como é que os Fhar souberam que eu não era igual aos outros Dakis? Então, minha mãe também é diferente das outras Gestais! Essa história não me convence. — Enquanto falava sozinha, tirou o macacão térmico e vestiu uma malha vermelha confortável e um moletom largão, preto e cinza. Sentou-se na cama e afagou a cabeça plumosa do avestruz, que permanecia com o pescoço arriado, sem fazer o menor movimento.

Ela rememorou as últimas frases de Eremia: "Eu lhe quero bem. E dizer isto para você me custa caro."

Instintivamente, puxou as plumas e ergueu a cabeça de Wapi, que abriu o bico e arregalou os olhos de dor.

— Eremia gosta de mim. Quer dizer que ela tem sentimentos. Então, ela também "tem um defeito". Eu... a contagiei!

Naquele momento, ela ouviu as harmonias alquímicas ressoando por toda a casa. As Sinfobaixas posicionadas sobre as cúpulas giravam a toda velocidade. Sinal de que a Bramante encontrava-se no laboratório.

A Maga do Vento soprou para o alto para tirar os cabelos dos olhos e, levantando-se de chofre com ímpeto assassino, desceu as escadas correndo velocíssima, deixando o Piróssio com o bico semiaberto e as longas patas meio dobradas.

Chegou ao térreo e colocou-se diante da portinhola de prata do Panacedarium, agarrou a argola de cobre pendurada no centro e bateu à porta.

— Está aberta, pode entrar. — A voz de Eremia estava calma.

A velha xamã estava debruçada sobre a mesa repleta de objetos de vidro, ampolas e vasos de barro. Numa das mãos, segurava a Cademônia Curvada, uma pinça de ferro, incandescente.

— Você realmente me quer bem? Fui eu que a contagiei e agora você tem sentimentos diferentes daqueles que tinha antes de eu chegar à sua casa? — arriscou a garotinha.

— Sim. Não posso negar isso. Mas isso não muda a situação em nada. Você tem de aceitar que é diferente dos outros. Emiós não é um mundo para você. — Eremia falava sem se virar, e em suas palavras ocultava-se profunda tristeza. A Bramante procurava controlar seus sentimentos, pois certamente não podia trair completamente sua natureza de Fhar.

— Você não pode me explicar por que meu pai nunca veio me visitar? — Morga aproximou-se na ponta dos pés.

— Não. Ele é quem vai lhe contar o resto. — A xamã pousou a Cademônia Curvada sobre uma pedra hexagonal e virou-se.

Fim da Oitava Parte.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora