3. Os Olhos de Yhari - Décima Parte.

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— Você é muito importante para mim. Salvei-lhe a vida porque amo sua mãe. Quero que você seja feliz. — Contudo, não emanava nenhuma afetividade daquelas frases. Serunte sufocava qualquer sentimento humano; queria compreender quão maravilhosamente imperfeita era essa sua filha, que ele adorava sem demonstrar abertamente.

Morga percebeu o distanciamento mental que o homem estabelecia entre eles. Uma punhalada ter-lhe-ia doído menos. Observou-o, desapontada, e não ficou temerosa com o seu aspecto austero. Pelo contrário, pensou que seu pai era como uma montanha de rocha duríssima que estava desmoronando diante dela.

— Você veio aqui para conversar comigo? Então, faça isso! Ou você tem medo de dizer que gosta de mim?

Outra flechada atingiu o Fhar, que sofria mantendo as emoções ocultas sob a Kaplá.

— Você não pode compreender o que eu sinto — respondeu, tirando a bandana.

A garotinha descobriu que os cabelos dele eram louros e cacheados. Esquadrinhou novamente os olhos que se moviam atrás da máscara: eram azuis, exatamente como os dela.

Repentinamente, Serunte pegou as mãos de Morga e as manteve apoiadas sobre as suas como se fossem plumas, depois as apertou.

— Você deve me escutar. Deve acreditar no que vou lhe dizer. Não me julgue agora. Tenha confiança em mim.

O calor do contato das mãos do pai a acalmou, tanto que desejou que ele a abraçasse. Mas não havia lugar para essa afetividade. Por outro lado, Eremia também sempre fora bastante reservada e pouco expansiva. Todos os Fhar eram assim, com o coração de pedra e a magia no sangue.

— Tenho dificuldade em pensar que você é realmente meu pai. Mas a cor dos meus olhos e a dos seus é um sinal demasiadamente evidente. Porém, sinto-me amada por minha mãe. O abraço dela é como um círculo protetor. — Morga deu um passo para trás, largando as mãos de Serunte.

— Chegará o dia em que os sentimentos não serão mais negados e a vida será muito diferente. Espero poder demonstrar para você o que agora não consigo — disse o Fhar, sentando-se na única poltrona do Panacedarium.

— Você não quer sequer me mostrar o seu rosto? Se você realmente me quiser bem, faça-o. — Morga provocou-o, e ele reagiu apertando os punhos como quem quer controlar o orgulho.

— Você bem sabe que nós só mostramos o rosto quando estamos entre Fhar. As regras da Imperalei devem ser respeitadas. — Serunte fechou os olhos e sentiu que o sangue lhe fervia.

Começou a suar, enquanto a ansiedade se apoderava da sua mente. Ele conhecia bem os efeitos que o nervosismo provocava no corpo, pois era perito de Medicina Kármica, e imediatamente adotou uma técnica de autorrelaxamento mental. A despeito da poderosa magia, sentia-se dilacerado entre o sentimento que tinha por sua filha e o rigor absoluto que lhe exigia manter uma atitude distante. Retirar a máscara significaria negar pertencer aos Fhar e se colocar no mesmo nível que os outros. Entretanto, mais uma vez, o amor perturbou os seus pensamentos.

Com um gesto veloz e violento, desenganchou a tira de Casca Ciungada atrás da cabeça e removeu a Kaplá.

Morga prendeu a respiração e olhou o rosto do pai, que imaginara infinitas vezes. A pele estava lisa, nenhuma ruga sulcava sua fronte.

— Estou com 531 anos, mas nós, Fhar, sabemos como permanecer eternamente jovens. Eremia é a única a se recusar a usar a máscara — explicou, esboçando um sorriso.

— Eternos? Não é verdade! Eremia ainda não criou a Shaal Tuak-Pà, e as Poções de Senthia são insuficientes para manter vocês eternamente vivos. E, depois, para que vocês querem ser imortais? — A garotinha levantara a voz.

— Nós somos os detentores da Alquimia Mágica. A morte não pode nos destruir. Este é o motivo pelo qual abandonamos a Terra e viemos para Emiós. O documento secreto que você encontrou explica isso claramente, não é? — Serunte inclinou ligeiramente a cabeça e observou sua filha enquanto esperava sua resposta.

— Vocês são uns monstros. Mataram crianças somente porque tinham sangue humano. Vocês não têm sentimentos. Mas você, então, como pode dizer que ama minha mãe? Quais e quantas mentiras vocês contaram ao povo de Emiós, que adora e protege vocês? — O gênio de Morga se revelara sem dar trégua.

A saraivada de perguntas irritou o Fhar, que se levantou da poltrona. Seu rosto tornou-se muito sério.

— Daqui a pouco você saberá muitas coisas. Mas você ainda não sabe usar bem os dotes de magia, senão teria a capacidade de controlar suas emoções agora também.

— Imperfeita! Sou diferente! Você esqueceu disso? Como é que você pode ser tão cínico? — A violência de suas palavras foi tamanha que Morga levantou a cabeça e, em meio de imprecações, soprou em direção às vigas do teto.

A potência da magia manifestou-se do nada. Uma trilha de vento girou entre ampolas e alambiques, as chamas do forno apagaram-se e os preciosos pós alquímicos guardados nos vasos e nos frasquinhos espalharam-se como chuva.

O rosto de Morga iluminou-se, e as sardas roxas brilharam como pequenos diamantes.

— PARE! A magia do vento não é uma brincadeira! Não a use comigo! — vociferou Serunte abrindo os braços.

Depois, ele escancarou a boca, que se tornou larga e deformada. A pele do rosto dobrou-se em mil rugas e, num átimo, Serunte engoliu o vento de Morga, realizando uma magia que demonstrou sua grande habilidade no uso das técnicas alienantes.

Quando voltou a fechar a boca, o rosto voltou a ficar liso, enquanto seus grandes olhos luminosos faiscavam de raiva.

Um silêncio espectral encheu o Panacedarium.

Pai e filha, um diante do outro, haviam dado provas de suas capacidades mágicas. Era um desafio que ocultava rancores e ressentimentos.

— O que você pensava que iria fazer? Assustar-me? Surpreender-me? Eu sou um Fhar. Sou cientista e mago. Sou seu pai e você tem de me respeitar! Sente-se e ouça com atenção.

A garotinha ficou de olhos arregalados e engoliu em seco, respirando depressa. Sentou-se novamente no banquinho e abaixou a cabeça, os olhos fixos no chão.

Fim da Décima Parte.

Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora