2. As Lágrimas da Gestal - Quinta Parte.

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A Bramante suspirou e, com o olhar perdido no horizonte, aproximou-se das colunas do pátio, enquanto brincava nervosamente com um pequeno prego de ouro e uma chave de bronze verde. Os dois balangandãs pendiam de uma pulseira que ela usava no braço direito. Morga conhecia bem esse gesto: Eremia tocava no prego e na chave quando estava muito tensa.

— Vou perguntar tudo para minha mãe. Não quero mais segredos — afirmou a garotinha em voz baixa.

Eremia não respondeu e continuou a brincar com o prego e a chave, enquanto o Obolho flutuava a pouca distância dela.

O vento aumentou, passando a levantar poeira e pedras: o cheiro da terra de Emiós era ácido e ferroso, pungente como a dor que a Imperfeita carregava no peito.

Morga voltou a escrutinar o céu.

— Por que será que cada vez sinto que me falta algo? Que aquele sol amarelo-claro nunca vai esquentar minha pele. As luas, então, me deixam inquieta, especialmente a branca, quando fica escura. Já a lua vermelha parece que está prestes a explodir.

— Quando as duas luas estão assim, despertam o desejo de dançar. Acho que os U'ndários e os Dakis estão festejando — respondeu Eremia, enquanto extraía da segunda portinhola do Obolho uma ampola de Galanga Márfica, um suco branco extremamente energético. Pingou uma gota na boca e passou a ampola para a garotinha.

— Eu bem sei, você já me explicou várias vezes que a rotação das três luas acarreta a mudança das estações e dos humores. Contudo, agora eu realmente não tenho vontade de dançar. Não gosto deste céu. Será que existem outros? — acrescentou secamente a garotinha, tomando também uma única gota de Galanga Márfica.

A Bramante virou-se:
— Talvez um dia você veja outro céu. Um céu azul, onde brilha um sol magnífico e onde, à noite, só reluz uma única lua de prata.

Morga puxou uma ponta do vestido de crepe.

— Existe realmente um céu assim? Você já o viu? Onde?

— Numa outra vida. Mas talvez tenha sido somente um sonho.

A resposta de Eremia permaneceu suspensa, e a jovem maga não teve tempo de perguntar mais nada. No alto, entre as nuvens, apareceu a Vádria, puxada por oito Cegóbias pretas de longo bico fino e asas robustas. As cegonhas de Emiós deslocavam-se em grande velocidade, dirigindo-se para a casa.

— Eis a carruagem vermelha. Coloque-se ao meu lado e receba sua mãe. — A Bramante passou as mãos pela cabeça careca, tocou no kumkum e olhou para cima.

As Cegóbias estenderam as patas compridas para tocar o chão, e a carruagem pousou delicadamente diante do pátio. As quatro rodas travaram sobre os seixos, entre os vapores que saíam das engrenagens do Solmo, motor de propulsão alquímica instalado na parte traseira da Vádria.

No centro da pequena capota da suntuosa carruagem erguia-se uma esfera de cristal dentro da qual ardia uma chama preta. Quando o fogo se apagou, a grande porta abriu-se, e a primeira a descer foi Mesia. A jovem Ancilante era alta e magra, completamente careca como Eremia. Seus lábios eram pequenos e roxos, e seus olhos, cor-de-rosa e transparentes, brilhavam como duas joias. Ela avançou lentamente, fazendo ondear o longo vestido de véu lilás. Abriu passagem entre as Cegóbias, que se acocoraram para descansar.

— Saúdo com graça a Bramante Branca, que tenho a honra de ver sem Kaplá. Um rosto tão rugoso e sábio é digno de respeito. O seu rosto é a verdade do tempo que passa e que nenhum Fhar admite. Saúdo com alegria também a jovem Morga, de quem ouvi falar. Sinto-me honrada com a hospitalidade que me é concedida. O que vou ver e sentir permanecerá gravado em minha mente e ninguém poderá apagar essa recordação. Viajei com serenidade na Vádria, renunciando à minha Espilonga como concessão ao Fhar Serunte. Estou aqui para servir as Gestais e verificar a mercadoria.

Eremia fez um gesto de acolhida, e Mesia respondeu baixando a cabeça em sinal de respeito. Mas se a Ancilante ficara perplexa com o rosto de Eremia, única Fhar que envelhecia às escondidas, Morga também reagira com estupor ao ver um ser tão estranho como Mesia. A garotinha permanecera boquiaberta, fitando os olhos rosa e os lábios roxos da Ancilante. Ela compreendeu imediatamente que Mesia estava perfeitamente informada acerca da importância daquele encontro planejado por Serunte. A visita fora organizada não tanto para buscar as poções de Aloe Feixosa e os suprimentos de Raiz Roxa; o verdadeiro motivo da viagem era ela, Morga. A Imperfeita!

Mesia virou-se para a carruagem e ajudou Sasima a descer. A Gestal alisou os cabelos louros enfeitados com pequenas margaridas de cristal e ajeitou o vestido verde-esmeralda, dirigindo-se a Eremia.

— Que felicidade poder admirar você sem Kaplá. Se o povo de Emiós pudesse vê-la, compreenderia a falsidade dos outros Fhar.

A Bramante Branca foi ao seu encontro sorrindo, seguida como sempre pelo Obolho, que esguichava vapor.

— Eu aguardava com esperança e estou pronta para receber vocês em minha casa. No que diz respeito ao meu rosto enrugado, acho que o dia da verdade não está longe. Todos compreenderão o que hoje é segredo — disse com firmeza.

Sasima olhou para Morga, que se mantivera rígida ao lado da coluna do pátio:
— Você cresceu. Está muito bonita, mas os seus olhos denotam ansiedade. Agora, acalme-se, sua mãe está aqui.

A garotinha prendeu a respiração e não conseguiu dizer nada; ela conhecia bem Sasima e sabia que ela era muito ligada à sua mãe. As duas Gestais eram amigas havia tempo. Sasima tinha 49 anos, e a sua experiência no Mosteiro de Hamalios lhe fora de grande auxílio. Impaciente, Morga olhava fixamente para a porta da Vádria.

Naquele momento, a Ancilante Mesia tornou a se virar para a carruagem e deu a mão a Animea, que desceu de cabeça erguida.

Ela era belíssima, de pele branca e rosto luminoso, os longos cabelos negros presos por três lírios de diamantes. Ela logo pousou os grandes olhos escuros sobre sua filha. O vestido azul finamente bordado marcava-lhe o corpo perfeito e gracioso: o rosto espelhava sua infinita alegria de rever a filha.

— Morga, meu tesouro. — A voz estrangulada pela emoção penetrou no coração da garotinha como um raio.

— Mamãe... mamãe. — Então, correu e abraçou-a com amor.

Morga apertava-se contra a mulher que lhe dera a vida. O perfume materno inebriou seus pensamentos, e até o céu cinza de Emiós lhe pareceu azul como o vestido de Animea. Azul como aquele céu que Eremia afirmara ter visto. O vento parou de soprar.

Fim da Quinta Parte.

Ps: Foto do Capítulo.

Ps: Foto do Capítulo

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Morga - A Maga do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora