— Mas como é que ele sabe que eu existo? Ele conhece minha mãe ou foi você quem disse? — Morga secou a boca e descansou o copo no chão.
— Você só está viva porque ele quis. — A frase da Bramante Branca foi recebida pela garotinha dos cabelos negros com um baque no coração. — Você entendeu de quem estou falando? — Indagou Eremia, olhando-a diretamente nos olhos.
— Meu pai! Serunte é meu pai! — Morga ergueu-se num salto desajeitado que derrubou uma grande vela preta, cuja cera escorreu para o tapete turquesa.
Wapi esticou o pescoço e emitiu um ruído estrídulo; porém não se mexeu da esteira, porque Eremia o imobilizou apontando-lhe o dedo indicador como se fosse uma flecha. Depois, sem alterar a expressão do seu rosto, agarrou os braços de Morga e, puxando-a para si, obrigou-a a sentar-se novamente.
— Sim, Serunte é seu pai. Agora, você sabe.
— E por que ele não quis ficar comigo? Por que minha mãe me entregou para você? O que significa que ele salvou a minha vida? — Morga cobriu o rosto; os pensamentos emaranhados davam um nó em sua mente.
— Ele próprio explicará isso a você, se ele quiser. A única coisa que eu posso confessar é que aceitei ficar com você aqui porque acho que você não nasceu por acaso. Você não veio ao mundo em Emiós para viver como todos os outros. Segundo as leis dos Fhar, as crianças como você não têm direito à vida — Eremia não conseguiu terminar de falar.
— O QUÊ? Mas de que leis você está falando? Vocês, Fhar, matam crianças? Mas por quê? — Morga estava fora de si.
— Baixe a voz e ouça. Em todos esses anos longos da minha existência, eu compreendi que nossa potência mágica não basta para sermos felizes. Certamente, é errado pensar que crianças como você não têm direito de viver. Contudo, esta é a realidade há quinhentos anos. — Eremia começou a transpirar, e as gotas escorriam pelos sulcos das profundas rugas que marcavam seu rosto.
Como se estivesse sendo arrastada por um rio em cheia, amedrontada pelas palavras da Bramante, a garotinha encolheu-se no chão com a respiração agitada e depois ergueu os olhos, passando o olhar ao seu redor: móveis, velas, lâmpadas, ampolas, velhos objetos e a lareira negra, com o fogo que ardia baixinho. O ambiente parecia-lhe repentinamente estranho. Aquela não era a sua casa. Não havia lembranças amorosas.
— Eu não tinha o direito de viver? Mas o que quer dizer? O que é que há de horrível em mim? Não sou digna? Sou tão diferente dos outros Dakis — Morga desatou num choro desesperado.
A xamã tinha sido cruel. Como podia ter lhe dito essas coisas?
— Eu havia avisado que saber a verdade iria lhe causar sofrimento. Você dá mostras de sua fraqueza, e para você, lamentavelmente, é natural. Está vendo que brincadeiras nos aprontam os sentimentos? Nós, os Fhar, não temos esses problemas, nem os outros Dakis, e muito menos as U'ndárias e os U'ndários, as Gestais e as Ancilantes. Em Emiós, não está prevista a existência de comoção, nem do amor. — A Bramante Branca levantou-se com dificuldade; o Penolho Quadrado, grande relógio de ouro pendurado na parede, marcava onze horas da noite em ponto.
Uma lufada de vento abriu repentinamente uma das quatro janelas gigantescas em forma de arco, as cortinas brancas se esvoaçaram molemente e todas as velas se apagaram, deixando o salão na penumbra. Somente a luz da lua azul cintilava, realçando os contornos de todas as coisas.
— Eu estou viva! Sou forte! Sou Morga! O vento está comigo. Eu amo minha mãe! E ela me ama. Não é verdade que ela não tem sentimentos; ela é uma Gestal e, de acordo com o que você acabou de falar, ela não deveria me querer bem. Mas você está errada. Está redondamente enganada! — Seu grito desesperado espalhou-se como uma onda; Morga lembrou-se das carícias de Animea, reviu seus grandes olhos negros semelhantes a pedras preciosas. O seu perfume, os longuíssimos cabelos pretos e a voz macia certamente não poderiam ter enganado o seu coração. — O que há de terrível em ter esses sentimentos? Vocês, Fhar, são monstros.
Morga começou a chutar os móveis, derrubou duas mesinhas redondas, quebrou os bibelôs de cristal e os amuletos de palha trançada. O vento voltou a entrar e uniu-se à fúria da garotinha, que vociferava e chorava.
Fim da Sétima Parte.
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Morga - A Maga do Vento
FantasyAno 500. Planeta Emiós. Morga tem 12 anos, cabelos curtos - negros como piche -, o rosto salteado com sardas roxas sobre a pele branca e olhos azuis. Ela vive em uma casa escondida na floresta com Eremia - a Bramante Branca dos poderosos achar, gove...