Nostalgia

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Ally chegou a pensar que era melhor que ele ficasse em casa. Quando Norman saía com o Greg, era quase 100% a certeza de que chegaria bêbado e tarde da madrugada. O que não era problema, mas de novo, aquela sensação incômoda de esperar que ele estivesse mais empenhado justamente agora, na reta final, ele parecia estar cada vez mais distante. Ou teria ela o afastado sem perceber?

"Tudo bem, eu ando mesmo meio estranha, mas ele deveria entender, não? Afinal de contas, é o meu corpo e é a minha mente que está uma bagunça, sem nenhuma probabilidade de melhorar em breve. Ou será que me incomoda que ele está vivendo como sempre?"

Fazia sentido. Assim que a gravidez passou a exigir mais esforço, noites mal-dormidas e dificuldades, Ally estava retomando o que já deveria saber desde quando Ian nascera: não iria voltar a trabalhar em 6 meses, nem em um ano. Não fazia a menor ideia de quando conseguiria voltar à vida como estava. Se por um lado, não tinha importância, por outro lado estava de novo com os sintomas de pânico do começo da gravidez. Sentia-se perdida, como se estivesse à espera de que algo a atingisse sem saber o que nem de onde. Era uma sensação ruim que ficava quando sentia que tudo estava parando de novo e não podia fazer nada a respeito. Era um medo enorme de desta vez demorar demais para voltar.

Ajeitou um travesseiro debaixo da barriga e tentou vira de lado para dormir, mas a cabeça toda noite era invadida por estes pensamentos, e naquela noite em particular, mais do que nunca. Não conseguia se conformar com a postura de Norman, mesmo que ela própria preferisse ele até tarde da noite em uma reunião ou trabalhando do que discutindo com ela em casa por causa daquele maldito carro. Como ele não conseguia entender que aquela decisão de comprar aquele carro justo naquele momento parecia gritar para ela que ele não se importava tanto assim com tudo que estava acontecendo?

Mas ele sabia, pelo menos?

Não, ele não sabia. E não sabia como contar. Não sabia o que dizer sem pensar que, talvez fosse uma sensação que poderia ser o segundo, terceiro ou vigésimo filho e não mudaria: estava diante de um abismo, estava chegando a hora de pular e ela não tinha a menor ideia de como seriam as coisas novamente.

Enquanto devaneava, ouviu um ruído que vinha de um dos quartos de hóspedes, no outro lado do corredor.Temendo que Ian talvez tivesse acordado e ido para a direção errada ao procurar por ela, fez um esforço e se levantou. Seguiu pelo corredor escuro, notando que a porta do quarto do filho estava exatamente como ela havia deixado e parou diante dela se perguntando se deveria abrir ou não. Assim que segurou a maçaneta ouviu de novo um ruído no final do corredor, notando as linhas de luz amarelada que delineava na parede a luz acesa atrás da porta encostada.

Abriu a porta devagar e Norman estava de pé diante de uma cômoda alta que haviam deixado ali. Ele não parecia ter percebido que ela estava ali, ela pôde ver que ele estava inclinado sobre uma gaveta aberta.

- Hey... - ela o chamou com um sussurro enquanto cruzava a camisa xadrez sobre o peito. Ele se virou com um pequeno sobressalto.

- Hey...você me deu um susto...tá tudo bem?

- Está sim, só ouvi um barulho e pensei que o Ian tinha acordado.

Foi até ele, encostando-se no ombro dele. Haviam pilhas de papéis em cima da cômoda que ele tirava e lia cuidadosamente cada vez que tirava uma folha de dentro.

- O que são esses papéis?

Ele olhou para ela, a luz daquele quarto estava tão fraca que os olhos dele pareciam totalmente pretos, um brilho suave que mal se podia notar. Sorriu um pouco sem graça enquanto voltava a olhar os papéis.

- Eu ia procurar os papéis para finalizar a compra do restaurante, mas aí encontrei estes...acabei me distraindo...desculpe, eu tentei não fazer barulho...

- Não, tudo bem, o Ian não acordou...

- Eu fico curioso às vezes...você se lembra de quando escreveu essas cartas?

Ele pegou um maço de 10 folhas que estavam presos com um clipe em um envelope. Ally reconheceu de imediato.

- Pensei que você guardava essas cartas no trailer...

- Trouxe faz um tempo...

- E estava procurando documentos no meio delas?

Ele corou enquanto passava um braço pelas costas de Ally, puxando-a mais perto.

- Nah...não sei porque falei isso. Eu não preciso de papel nenhum, confesso. Faz tempo que eu não relia isso.

- Deixa eu ver... - Ally pegou a carta que ele estava segurando.

"Então, enviei um monte de e-mails e mensagens, até que decidi que era melhor seguir o conselho mais antigo (e eficaz) que conheço: não fique pensando, escolhendo ou hiperrelativizando tudo; apenas siga seu coração. E foi exatamente o que eu fiz, e meu coração apontou para um centro de acolhimento de refugiados da Guerra Civil no Congo. Enviei uma mensagem para eles através do Facebook e expliquei que eu tinha um monte de roupas de bebê que não serviam mais no meu, todas em excelente estado, além de alguns brinquedos e outros itens, como mamadeiras, uma cadeirinha de descanso e o berço que meu filho nunca usou. Também um monte de cobertores e travesseirinhos. Não foi nem dez minutos depois que o diretor da ONG, Petench me retornou e conversamos horas, sobre o que eles precisam e o que eu posso ajudar. Amanhã mesmo estou indo até lá para levar o que eu tenho e também para conversar com as 12 mulheres que estão grávidas ou no puerpério para apenas ouvir o que está acontecendo com elas. Muitas são vítimas de estupro, e deve fazer falta ter alguém para conversar que possa realmente ouvir. O abrigo é realmente bem cheio. Mas espero ajudar na parte de ficar cheio de humanidade, porque de sofrimento está com a capacidade além do limite."

- Eu lembro disso...eu ainda ajudo eles, mesmo que não esteja mais lá.

Ele se virou e olhou para ela, levantando o queixo um pouco.

- Não sabia que você ainda ajuda eles. Você sempre escrevia contando depois disso de quando voltava no abrigo.

- Tem muito que você não sabe...inclusive dessa parte...cresceu muito a lista de instituições desde essa época.

- Mesmo? Você é cheia de surpresas, não é?

- Até o Teatro...eu não tenho como ir lá ver os shows, obviamente, nem os espetáculos, mas sempre que fico sabendo que estão em algum tipo de risco de fechar, eu ajudo transferindo algo...não é como se eu tivesse milhões na conta, mas...

- Entendi...engraçado que eu me esqueci completamente disso. E era o que eu mais gostava quando lia as cartas. Você gosta de ajudar, né.

- Eu gostaria bem mais de não precisar ajudar...

Ele percebeu que havia ainda algum tipo de julgamento ali implícito. Afinal ela não ganhava tanto quanto ele, nunca havia pedido um único dólar, mas não estava comprando um carro novo. Ally percebeu que ele parecia desconfortável, desencostou a cabeça de seu ombro e se debruçou um pouco sobre os papéis.

- Mas eu lembro muito bem de quando escrevia. Era sempre no mesmo lugar. Na mesa da cozinha, durante a tarde, enquanto o Ian cochilava ou de noite, depois de coloca-lo para dormir. Fazia uma caneca de café para não dormir enquanto escrevia, acendia um cigarro e o ventilador na porta para a fumaçã não entrar no resto da casa.

- Naquela mesma cozinha?

- Sim, naquela mesma...depois, quando escrevia durante a tarde, quando o Ian acordava me sentava na rede. Aquela mesma rede. Relia tudo com cuidado enquanto o Ian brincava com os cães no quintal e depois no fim de semana quando eu ia para a casa da minha mãe, deixava ele com ela e ia até o Correio enviar.

- E sempre tinha um coupon-response junto de cada carta.

- Sobrou algum?

- Não. Eu usei todos que você enviou...

Ela sorriu enquanto olhava o calhamaço de folhas de papel.

- Eu mesma não acredito na paciência que tinha para escrever tantas cartas à mão.

- Eu sei...também nunca entendi essa paciência toda, e porque pra mim...?

- Acho que eu torcia para que você lesse e para que não lesse ao mesmo tempo...contava muito mais de mim por escrito do que falei desde quando estamos aqui. Vamos ver...

Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.Onde histórias criam vida. Descubra agora