ALGO EM QUE ACREDITAR

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" Aconteceram coisas demais em São Paulo. Não é preciso acrescentar mais essa no rol de confusões. De qualquer maneira, não foi nada de mais. Nem é digno de nota."

Por mais que soubesse que estava apenas tentando criar justificativas para os próprios medos e continuar procrastinando, Ally se convencia com variações do mesmo pensamento dia após dia, até que perdesse a importância. Seu outro receio era que Jeffrey acabasse contando antes dela, e esse pensamento parecia mais fixo em sua mente do que o anterior. Não devia ter contado, por que havia confiado tanto nele? Ele era amigo do Norman.

Muito mais que dela. Isso, ela tinha certeza. Devia ter falado com Iza, ou até mesmo com o gato, mas nunca com o Jeffrey.

Ele podia acabar criando uma confusão se presumisse por um minuto, em algum intervalo ou hora de almoço no set, que ela já havia contado para o Norman.

"Para criar uma mentira, precisa comprometer com ela para sempre".

Concluiu que era inútil tentar antecipar o futuro. Todo dia pensava que era a hora de contar, mas sempre estavam felizes demais, ou ocupados demais, ou cansados demais. E assim, a cada vez que estava confirmado que ninguém havia contado nada para Norman, a decisão era protelada.

Ainda recebia ligações de Marco, que fazia sempre questão de manter como uma conversa puramente profissional; aquela parte era séria, seria seu último trabalho com ele. Mesmo que às vezes pensasse que melhor seria simplesmente não continuar aquele projeto.

Certa noite, depois que as crianças já estavam dormindo e Ally finalmente terminava sua parte da peça, não esperava por Norman. As gravações noturnas estavam adiantadas pois havia uma previsão ruim para os próximos dias; precisavam de todas as noites sem chuva que conseguissem.

Não era nada de novo para Ally; era bem mais fácil ali. Ele chegaria tarde, talvez exausto. Até mesmo podia deixar para dormir no trailer, e então emendava dois ou três dias no set. Era bem melhor que seis meses inteiros separados. De qualquer maneira, durante as gravações noturnas preferia mesmo que ele ficasse no set. Não há lugar seguro no mundo quando se trata de dirigir tarde da noite.

Ou seja: os planos para a noite eram simplesmente colocar as crianças na cama, trabalhar, talvez comer alguma coisa e ir dormir. Faltavam poucos dias para que as gravações do filme com aquela mulher estranha começasse. Ally preferia não prestar muita atenção aos pensamentos. Às vezes a imagem de um beijo roubado que não havia visto se esforçava para ser visto nitidamente em seus pensamentos, mas tentava sempre pensar em outra coisa. Com o tempo, estava ficando menos difícil. Nunca mais fácil.

Com um cigarro e uma xícara de chá quente, sentou-se à janela, o mesmo bom e velho lugar favorito. Abriu uma fresta das vidraças altas e estreitas para acender o cigarro. O ar estava morno e parado lá fora. As árvores nas margens do bosque não balançavam sequer as folhas mais altas das copas. Um feixe de luz amarelada e bem difusa começava a se estreitar, vindo de algum lugar próximo ao portão, e esperou atenta até ver a moto dele encostar na porta da garagem enquanto ele a empurrava desligada.

Estava tão exausto que sequer olhava para os lados quando caminhou em direção à porta. As luzes estavam apagadas, logo, Ally não esperava que ele a visse ali. Quando a porta abriu, Ally esperou imóvel até que ele colocasse a jaqueta no gancho e as chaves no móvel ao lado. Só então tragou o cigarro para que o pontinho luminoso chamasse sua atenção.

Com o susto ele deu um passo para trás, as costas apoiadas na parede e a mão sobre o peito.

— Puta que pariu... — resmungou com a voz ofegante.

Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.Onde histórias criam vida. Descubra agora