2.3.2 - PEÇAS ENTRE AMIGOS

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Quando estacionou o carro na praça em frente ao Edifício Viadutos, Ally não sabia o que esperar. Em teoria, seria uma tarde tranquila com um velho amigo. Em teoria. Algo naquele encontro no teatro a deixara apreensiva. Não era "algo" sutil ou indecifrável, estava bem óbvio que depois de todos aqueles anos trabalhando juntos, mesmo que remotamente, Marco parecia ter entendido algo errado quando ela chegou sozinha no teatro. Mesmo que duvidasse que ele tentasse algo sabendo que ela não estava interessada, era incômodo demais ir até lá sem a segurança de antigamente, sem se sentir apreensiva ou imaginando cenários possíveis onde precisaria se impor.

Esse tipo de respeito sempre fora algo natural e pelo visto, era um respeito natural porém frágil.

Era o mesmo lugar de sempre, um apartamento simples, a cozinha sempre com pelo menos dois ou três pratos esperando serem lavados, os pôsteres em todas as paredes e a vitrola que estava sempre ligada.

Naquela tarde era Hank Williams.

Teve alguma conversa jogada fora, do tipo que cinco segundos depois que acaba já não se lembra mais uma vírgula sequer. Ally havia lido alguns trechos da peça, algo melancólico sobre amigos que compartilham a memória de um outro que havia morrido na noite anterior. Era o que conseguiam criar juntos, pensando nas longas noites de despedidas de vários amigos.

— Às vezes parece que estamos brincando de resta-um... — Ally começou a ler sua parte do diálogo. — Ou até que o tal do arrebatamento que falam tanto acontece lentamente, e a gente vai ficar aqui enquanto todos os escolhidos por Deus estão subindo.

— E quem garante que estão subindo?

Ally continuou dedilhando o teclado do notebook. Parou por um segundo, com um cigarro na boca e um olhar distante.

— O que foi?

— Só estava pensando...não, não na peça...mas você vê alguma vantagem nesse lance de morrer e "subir ou descer"? Eu não sei...de inferno eu acho que já conheci o suficiente, e um pouquinho do céu também...

— Porra, mas tem algum lugar para ir depois...eu acredito nisso, pelo menos...

— Eu acredito, mas...será que não é melhor ficar por aqui mesmo? Pensa bem: é o melhor dos dois lados...eu ficaria aqui, esperando em alguma casa ou quarto vago de hotel. Ia esperar alguém se mudar e ficar atormentando, acendendo e apagando luz, abrindo torneira, arrastando correntes, sei lá. Ia me divertir um pouco...

— Tirando o sossego dos outros? — Marco retrucou com uma gargalhada. — É a sua definição de paraíso?

— Ué, e por que não? Tirar meu sossego foi o paraíso de muita gente, quero saber como é...

— Não precisa esperar morrer pra isso...

— Do jeito que eu sou tonta? Eu fico com peso na consciência. Talvez quando virar um fantasma eu não me sinta culpada...bom, ninguém vai ver que sou eu, deve facilitar as coisas. Espera...Você tá escrevendo isso?

Ele sequer a respondeu, nem verbalmente, um gesto nada. Estava totalmente concentrado nos dedos no teclado.

— Eu devia colocar um gravador aqui, caso eu esqueça algum trecho da conversa...continua.

— Eu estava só conversando, não ditando um diálogo!

— Mas ficou bom...olha.

O note de Ally tocou um sininho insolente quando o documento compartilhado foi atualizado.

— Hm...na verdade...ficou legal.

— Eu disse. Você tem um timing bom pra comédia.

— É só para não surtar com o cotidiano, acho.

Levantou-se para pegar outra cerveja na cozinha assim que ele se levantou da poltrona onde estava para se sentar no chão ao seu lado. "Essa não" ela pensou. Quando voltou, ele ainda estava ali, e ela ficou parada, sem saber o que fazer por um segundo, até que decidiu sentar-se no sofá. Não estaria fazendo uma desfeita com o amigo, mas ao mesmo tempo estava deixando claro seu limite.

E parecia ter funcionado de alguma maneira, pois não houve mais nada estranho. Por volta de 9 da noite resolveram que já tinham material o suficiente. Também combinaram uma entrevista para uma revista literária para a sexta-feira e tudo parecia resolvido e definido.

Antes de ir embora, ele foi com ela até a praça.

— E o marido, quando você volta para ele?

— Na verdade, ele vem pra cá semana que vem. Ele não veio agora por causa do trabalho, mas foi bem na reta final...

— Você podia esperar uma semana, caramba...Deixou o cara lá sozinho? Porra...

— Eu sei...eu mesma pensei nisso assim que eu cheguei...Mas foi tanta coisa legal que eu não quis esperar. Sei lá, no lugar dele, acho que ele não me faria esperar também.

— Você acha?

— Achar eu acho, agora, se perguntar se eu tenho certeza, é mais complicado...

— Traz ele lá no teatro, quando ele chegar. Vai ser massa...o cara é gente boa.

— A ideia é essa...é o único lugar seguro para trazer ele sem rebuliço.

— Tá bom. Vai lá, Menina...

Ally se despediu aliviada. Era um bom sinal ele falar do Norman, ainda que só àquela altura. Estava tudo esclarecido, na melhor das hipóteses, ele poderia nem estar com intenção alguma e corrigiu por si próprio antes que o mal-entendido continuasse.

Se fosse mesmo um mal-entendido.

Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.Onde histórias criam vida. Descubra agora