"Finalmente alguma paz" Norman murmurou enquanto acendia um cigarro olhando para a escultura que havia ficado tanto tempo esquecida. Mesmo que a deixasse coberta com uma lona, ainda havia alguma poeira na base, a única parte descoberta e precisou de um pano úmido antes de retomar.
Pensava no dia da exposição de suas fotos, não faltava muito até o dia. Estava de férias, mas sua ideia de férias envolvia algum trabalho novo — sempre havia sido assim, mesmo que nos últimos anos tivesse esquecido um pouco. Ou talvez esteve apenas distraído.
Se perguntou se estava mesmo animado por ter ainda algum trabalho a fazer ou se estava buscando um refúgio, mesmo que tudo estivesse em paz de novo. Ally começava a parecer mais com uma bomba-relógio, e qualquer acidente poderia disparar o cronômetro. Talvez só estivesse confusa com todas as mudanças que haviam acontecido, ou talvez estivesse infeliz.
Até mesmo aquela vez que a encorajou para confrontar seu pai, o que esperava que fizesse alguma diferença, uma mudança total e finalmente convencê-la a aceitar o que ele a oferecia...bem parecia ter saído pela culatra de alguma forma.
Enquanto os pensamentos iam e voltavam, do trabalho, a exposição, família, passado e Ally, sequer percebeu que suas mãos trabalhavam como se tivessem vida própria e o formão que segurava já arrancava mais lascas de madeira.
Do outro lado da placa de MDF que dividia o ateliê, Ally continuava olhando para a janela e para o relógio em seguida. Queria poder dividir a mente em pelo menos quatro partes iguais. Norman insistia que ela deveria emoldurar aquela tela, quem saber encontrar alguma galeria e expor. "Não faz sentido pendurar na parede um retrato da própria casa", era o argumento mais forte que ele tinha. De certa forma, ele parecia ter razão, mas por outro lado, era igualmente estranho vender um pedaço de casa para ficar pendurada em outra. Chacoalhou discretamente os cabelos como se os pensamentos estivessem agarrados a eles.
"Preciso de mais alguma coisa" a frase ecoava solta dentro da cabeça, mas não sabia porquê. O que mais faltava? Era como se não sobrasse mais nada no mundo. Apenas um sentimento estranho que algo não era o suficiente, mas sem saber o que era exatamente.
Sentou-se na cadeira diante da tela, de costas para a escrivaninha banhada por raios de sol. Naquela época do ano tinha aquele espetáculo gratuito todas as tardes.
Uma vez ele havia perguntado se ela o permitiria fazê-la feliz. Desde então, ela achava que o havia permitido, mas não tinha tanta certeza.
De alguma forma, sabia que era injusta com ele, até mesmo ingrata. Mas não sabia como poderia consertar.
— O que eu posso oferecer em troca dos pensamentos?
Ally olhou para ele, que estava parado ao lado da tela, e esfregou a testa com a palma da mão.
— Você me assustou, não te vi aí...
— Eu sei que você não me viu...estou te observando há um bom tempo esperando você notar...
Ela riu um pouco sem graça enquanto largava o pincel ao lado da tela.
— Não tenho mais nenhuma ideia do que fazer aqui...acho que terminei... — tentou mudar a conversa. Norman foi lentamente, com os olhar fixo na tela, parou atrás da cadeira onde ela estava sentada e se inclinou, beijando sua nuca enquanto a envolvia com os braços.
— Você é boa nisso... — sussurrou enquanto beijava seu rosto. — Na verdade, isso me irrita um pouco...
— Eu irrito você?
Ele riu da indignação dela.
— Você sempre se destaca nessas coisas, é isso que eu quis dizer. Dá um pouco de raiva, saber que você passou tanto tempo deixando tanto talento de lado...
— Não vamos entrar de novo nesse assunto...
— Não vamos falar sobre isso, tudo bem. Na verdade, só estava me perguntando se você se lembrou de hoje... — disse enquanto se afastava da cadeira e se apoiou de costas na escrivaninha e acendeu um cigarro.
— O que tem hoje? — ele apenas levantou uma sobrancelha enquanto soprava a fumaça, o suficiente para ela esfregar de novo a testa com a mão. Ele riu um pouco, pois estava suja de tinta e agora tinha um rastro azul da Prússia atravessando a testa. — Eu esqueci...completamente, você acredita?
— Estava esperando a hora de buscar as crianças, não é? Vem aqui um pouco... — Norman fez um sinal chamando-a, com o indicador dobrado para si. — Você se batizou como Simba, bem no meio da testa...
Ela arregalou os olhos enquanto ele ria e pegava um pedaço de pano úmido. Porém, ao esfregar, não viu que o pano já estava sujo de tinta, e o borrão azul da Prússia agora combinava com um Vermelho chinês e Amarelo Cádmio Claro.
— Acho melhor você lavar o rosto, mesmo...
— Eu senti alguma coisa mais...pastosa na minha cara mesmo. Pateta... — riu enquanto o beijava. Havia um leve gosto de fumaça em sua boca, mas nunca a incomodava, na maioria das vezes, mal sentia aquele gosto.
Ele estava tão envolvido nos lábios dela que não percebeu quando ela riu um pouco afastando os lábios, segurando seu rosto com as duas mãos.
— O que foi? Qual é a graça?
Ela riu mais um pouco, tocando os lábios dele com os seus antes de sussurrar em seu ouvido
— Acho que você também precisa lavar o rosto...mesmo que o azul da Prússia destaque o azul dos seus olhos...
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Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.
ChickLitForam dois anos de esforços, tentado sustentar a relação e finalmente conquistar a confiança de Ally. Mas será que esses esforços bastavam? Com a relação evoluindo ao passo que a carreira de Norman avança, más decisões farão mal a todos. Mas será me...