“Sara, Sara
Wherever we travel we're never apart.
Sara, oh Sara
Beautiful lady, so dear to my heart.
How did I meet you? I don't know.
A messenger sent me in a tropical storm.
You were there in the winter, moonlight on the snow
And on Lily Pond Lane when the weather was warm.”
-*-
Quando voltou, Norman estava novamente em sono profundo ao lado de Izzy com os bracinhos abertos e os dedinhos gorduchos encostados no pescoço do pai.. Ally pegou a colcha infantil no guarda-roupa com cuidado cobri-los e afastou a franja de cima dos olhos da mesma forma que costumava fazer com Ian. Ele dormia tão profundamente que sequer notou.
Na verdade, não sentia um pingo de sono, então foi até a cozinha, pegou um copo baixo para servir-se de uma dose pequena da garrafa de bourbon que sua mãe havia comprado para Norman. O apartamento estava em silêncio absoluto. Mal havia passado de meia-noite e as portas de todos os quartos já estavam fechadas e todas as luzes desligadas.
“Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela”
Era um trecho de algum romance de Clarice Lispector que ia e voltava do pensamento enquanto pegava na bolsa o maço de cigarros e o isqueiro. De qual romance era o trecho, não conseguia se lembrar por mais que se esforçasse. Ao se sentar na espreguiçadeira da varanda pequena pareceu-lhe por um átimo que enquanto distraída se aconchegando com as pernas cruzadas, uma parte pequena de si sussurrou do canto mais fundo de sua mente o nome do livro, como se soprasse uma bolha de sabão que ao atingir a consciência se estourasse em mil gotículas de água ensaboada. A mente estava cheia de imagens, lembranças e uma vontade estranha de selecionar o que conversaria com ele, agora que estava ali, do outro lado da parede fisicamente enquanto o sono o carregava para algum lugar que sua mente insone não permitia que ela o seguisse.
Acendeu o cigarro observando a fumaça que saía da brasa e subia reta e se espalhava pelo ar. Quanto tempo havia passado desde então? Era como se cinco segundos coubessem em dez mil anos. Se sentia uma velha repentina de trinta mil anos.
E quase a senhora idosa de trinta mil anos morreu dura e seca bem ali naquela varanda quando uma sombra se moveu dentro da sala escura do outro lado da porta de vidro e se aproximou como um fantasma que crescia enquanto se arrastava sem pés até ela.
— Perdeu o sono? — Ele perguntou ao abrir a porta.
— Quase perdi a vida por um segundo… — Ally respondeu com a mão no peito e uma espécie de risada aliviada. — Eu vim só fumar um cigarro enquanto o sono não volta. E você?
— Comecei a acordar por que parecia que eu estava dormindo em um forno. De repente levei um tapão na cara, acho que o cobertor estava incomodando a Izzy também.
— Velhos hábitos...eu sempre preciso cobrir ela quando estamos em casa...esqueci… — suspirou esfregando a mão no lado direito do rosto como se quisesse apagá-lo.
— Não se ensina truques novos a um cachorro velho, afinal…— disse enquanto resmungava e se sentava no chão, apoiado no parapeito da varanda. — Vamos lá, começa…
— Começa o quê?
— O que tirou seu sono dessa vez?
— Estava apenas pensando...é a minha hora perigosa da tarde…
— Meia noite e pouco?
— É...me lembrei disso enquanto vinha para cá, mas não consigo me lembrar de qual “Amor” é esse trecho…
— Como?
— É o trecho de um conto da Clarice Lispector…
— “Amor”?
— Você conhece?
— É claro que não tenho a menor ideia...mas você mesma acabou de falar…
— Meu Deus….eu não estou no meu normal mesmo…
— Então...pode começar… é esse negócio do seu pai que tá incomodando, não é?
Ela desviou o olhar para o horizonte além da varanda.
— Quando foi mesmo a última vez que você falou com ele?
— Uns...seis ou sete anos. Acho que sete, foi logo quando descobri que estava grávida do Ian.
— Muita raiva dele?
— É...um pouco. Não sei. Quando a minha mãe me contou por um segundo eu pensei que ele estava morto, eu fiquei furiosa nesse único segundo. Mas aí ela disse que não, que ele tentou...eu não sei o que eu devo sentir com essa história.
— Como assim, o que você “deve” sentir?
— Não é que eu deveria sentir algo...eu não devia sentir nada. Não tem nenhum sentimento meu que ele merece. Você sabe do que eu estou falando…
— Você não vai gostar nem um pouco do que eu vou te dizer, mas…
— O quê?
— O único jeito de não sentir nada que você não queira mais… Você tem que enfrentar ele, Ally. Enquanto você ficar remoendo pelos cantos você não vai se livrar disso.
— Eu não quero isso. Não quero ver ele na minha frente, não quero ouvir a voz… Você tem ideia de como é isso? Quando eu morava aqui eu chegava a evitar até mesmo passar perto da rua dele.
— Eu sei, eu sei de tudo isso...O que você não sabe, e eu tô arriscando o meu pescoço aqui dizendo isso e por isso sempre fiquei quieto é: ele partiu seu coração. Não adianta bufar e cruzar os braços, Ally, qual é, você sabe disso tão bem quanto eu. Vou até arriscar que você ainda ama ele, sim. E é por isso que você evita, você não está punindo. Você tem medo dele.
— Eu nunca tive medo. Não depois que caiu a máscara dele.
— Então por que você não enfrenta ele? Ally, eu quase não te reconheço agora. O que eu sempre admirei em você é justamente que nunca vi você congelar com qualquer desafio. Às vezes, inclusive você é bem chata, briguenta. Mesmo comigo! O que ele tem que é tão especial, que você se sente tão pequena?
— Eu não me sinto assim. Na verdade é algo diferente. Eu sei que eu viro um monstro às vezes. Quer dizer...no começo a gente quase partia para a violência, lembra?
— Perdi um cinzeiro e uma vidraça, como esquecer?
— Não é assim com ele. Ele...não absorve nada disso. Dá um jeito sempre de inverter toda a semântica a favor dele. Você acha que eu nunca pensei nisso, em chegar e vomitar em cima dele tudo que ele fez?
— E o que te impede, Ally? Você nunca teve medo de magoar ninguém, isso chega a ser um defeito grave às vezes...Por que está pisando em ovos com ele?
— Por que é inútil! Você não conhece a figura. Eu penso em tudo que ele fez, ou disse, ou deveria ter feito, em falar tudo de uma vez e adivinha...para começar eu precisaria de meses! MESES ininterruptos. Para falar tudo, parando só para comer e dormir e eu sei que enquanto estivesse comendo ou dormindo, ainda estaria remoendo muitas outras coisas e mesmo se passasse meses falando todos os dias, quando terminasse eu iria dormir uma noite e não conseguiria porque sempre falta alguma coisa. Além do mais, o que ele pode fazer agora, Norman? A maior injustiça da vida é essa, quem entra na minha vida para bagunçar tudo, simplesmente vai embora e sempre sobra pra mim, eu tenho que arrumar sozinha…
— Uou, uou, calma… — ele pediu com as palmas estendidas para ela, pedindo que diminuísse a velocidade. — Você está se atropelando, exatamente como você atropela as pessoas que te amam quando a gente erra com você. Percebeu?
Apesar de estar apenas pedindo que ela falasse mais devagar, o efeito não foi o que esperava, se calou, olhando para o horizonte propositalmente no lado oposto de onde ele estava.
— Eu já contei para você o que aconteceu comigo, sobre os meus fardos, por que você guarda esse inteiro e fica carregando ele por aí, Ally? Você foi embora daqui carregando isso, veio morar comigo ainda carregando, e agora mesmo está arrastando ele por aí nos ombros...E é literalmente, olha só… — ele colocou a mão no ombro dela, apertando com cuidado. — Olha só, você começa a falar disso e os seus ombros quase encostam nas orelhas…o que está adiantando ficar com esse peso todo?
— E você acha que se eu enfrentar ele isso vai melhorar? Se eu despejar isso tudo nele, ele só vai acrescentar mais e mais peso ainda.
— Ainda acho que você dá poder demais para ele.
— Ele tem esse dom incrível, sabe? Ele destrói a vida das pessoas e sai ileso. O máximo que acontece é as pessoas se afastarem dele. E aí ele parte para procurar outras pessoas. É uma porra de um vampiro…Ele fez isso comigo, com a minha mãe, com a ex-mulher dele e os filhos que tiveram...acho que até com os pais dele. Às vezes me pergunto como deve ter sido horrível para eles, passarem uma vida inteira apenas passando desgosto com o próprio filho…
— E isso te devora por dentro, não é? Que todos aceitaram e apenas foram embora.
— Não é justo isso, não é? Parece que não tem como fazer justiça, não no caso dele…
— Acho que de certa forma, sobrou pra você.
— É... talvez. Não é justo isso, sabe? Tem muita gente com muita mágoa pra carregar dele. E justamente eu…
— Justamente você, mesmo não querendo saber, todos confiaram em você todo o…”material”. E sabe o que mais? Não acho que é azar, ser justamente você. Não tem ninguém mais perfeita para isso.
— Ok, isso eu vou entender como um insulto. Não merecia passar por nada disso!
— Não, não é isso. Não tem nada a ver com carma negativo, ou coisa assim. Tem mais a ver com...sincronia, mesmo. Você não consegue deixar pra lá quando as coisas estão erradas, é o seu jeito. E é perfeito.
— Alguém precisa quebrar o silêncio, é isso?
— Bom, se ninguém mais tem força e disposição para isso, alguém precisava ter não é? Talvez até sirva para ele pensar duas vezes antes de fazer mais alguma “vítima”.
— Isso não é responsabilidade minha, Norm.
— Não, não com ele. Mas é comigo, é com o Ian e a Izzy, com a sua mãe...De certa forma, quando essas lembranças começam a te morder por dentro, todos nós pagamos. E eu não acho que você ficar alimentando um barato que não deveria durar tanto.
— E no que você acha que vai adiantar? Ele pedir desculpa? Não adianta mais…
— Essa é uma boa maneira de chegar mais rápido em lugar nenhum. Amanhã mesmo, eu vou com você, ok?
— Você? Junto comigo? Onde?
— Na casa do seu pai. Ele não precisa saber, a não ser quando estivermos lá. Ele já está em casa não é?
— E aí ele vai se fazer de vítima porque acabou de chegar do hospital e ao invés de cuidar, ele vai ser massacrado pela filha cruel. Imagina só.
— Pára de arrumar desculpa. Nós vamos.
— Eu não sei se quero que você vá junto, Shoo…
— E por que não?
— Tem coisas que...bom, algumas você sabe, mas a extensão dos danos, sabe...eu não queria que você soubesse.
— Bom, azar o seu; se tivesse resolvido antes que eu finalmente conseguisse entender mais ou menos o português…
— Tá vendo? Só piora… — foi uma quebra de toda a tensão da conversa que funcionou um pouco. Ela acendeu mais um cigarro, olhando para o horizonte oposto. — Não é que eu esteja guardando segredos. Só que eu gosto do jeito que você me olha. E eu não quero que isso mude, sabe, que vire um olhar de piedade.
— Piedade? Ally do céu, se um dia eu sentir piedade ou pena de você com certeza é Alzheimer e eu não te conheço mais! Como você acha que eu te olho? Deixe-me dizer: eu vejo você como uma mulher infinitamente mais madura do que gostaria, que quebra como uma menininha, mas é teimosa o suficiente para não se deixar abater tão fácil. Também é a mulher que eu amo, a mais inteligente que eu já conheci, que consegue ser um poço de carinho em um momento e uma fera em outro, que é a melhor mãe sem deixar de ser profissional...e tem esse traseiro ainda que é um bônus.
Enquanto ela ria, se sentou ao seu lado. Passando o braço sobre seus ombros, beijou sua têmpora.
— Não tenho nenhum motivo para te ver tão pequena. Na verdade, é o contrário disso, você é muito maior, mais forte do que eu, acredite em mim nessa. Você não é filha dele, Ally, você é dona de si mesma. E ele vai descobrir isso e provavelmente vai se arrepender muito. Você poderia ter sido a filha para ele se orgulhar.
— Isso eu deixei pra minha mãe. Ela merece.
— Isso. Agora vamos começar a baixar esses ombros? Cristo, me dá agonia quando você fica tensa assim.
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Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.
ChickLitForam dois anos de esforços, tentado sustentar a relação e finalmente conquistar a confiança de Ally. Mas será que esses esforços bastavam? Com a relação evoluindo ao passo que a carreira de Norman avança, más decisões farão mal a todos. Mas será me...