NO MEIO DA NOITE... - DAS MALDIÇÕES DO INVERNO

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— Uma moedinha pelos seus pensamentos...

— Estava só me lembrando de antigamente...

— É...acabei me lembrando disso também. E de outras longas conversas aqui mesmo.

— Quando o Ian dormia, não é...era tão gostoso...

— Ficávamos conversando na sacada até amanhecer...às vezes aqui mesmo, na cama...

— Só era ruim no inverno...no inverno eu preferia o quarto.

— Hoje está bem frio aqui...Sem chuva nem nada, só o vento gelado mesmo.

— Ainda bem que não estou aí então. Aqui pelo menos o frio só vem na hora certa, quando é para esfriar mesmo: à noite.

— Não entra na minha cabeça essa repulsa toda. Contra o frio, contra a neve...Quando você veio para cá eu pensei que você iria adorar a neve aqui em NY.

— Só é bonito, mas nada confortável...é pior que frio, é gelado.

— E se tivéssemos ido patinar no Central Park, pelo menos uma vez? Nunca dava tempo, mas se eu te levasse uma vez que fosse...

— Shoo, talvez, mas você precisa entender uma coisa: esse negócio de frio, para mim é uma maldição. Eu fui amaldiçoada pelo inverno. Acho que eu gostava mais de frio quando era mais nova. Afinal era só vestir um casaco e engolir umas doses de conhaque, ficar dentro do bar.

— Estamos exagerando no drama esta noite, não acha, senhorita? Maldição do inverno é um pouco demais...

— Olha só: tudo começou em um ano. Foi o pior inverno em São Paulo e justo nesse inverno, uma cárie enorme no dente do siso começou a inflamar. Não só doía, latejava. A polpa do dente inflamou, a gengiva também, foi um inferno...

— Já tive uma dor dessas, é horrível mesmo.

— Não, não. horrível é quando você dá um gole na Coca-Cola e descobre que é café. É quando você sai da cozinha e deixa duas gotas de suco de laranja na jarra dentro da geladeira e cava um buraco no pote de manteiga. São os pelinhos da barba que você deixa na pia. Essas coisas são horríveis. Essa dor de dente foi na mesma época que aquele babaca me quebrou o maxilar. Eram duas dores ao mesmo tempo, na mesma região.

— ...ouch...

— "Ouch" mesmo, com toda certeza, um baita "ouch". Doía tanto que eu queria enfiar um alicate na boca e arrancar o dente eu mesma. Queria entrar num ringue de boxe e chamar um pugilista de arrombado pra ele me dar um socão e nocautear, qualquer coisa. E estava muito frio, o que piorava muito a dor. Quase sinto de novo o ouvido zunindo e estalando, o lado direito do meu rosto inchando...

— Tudo bem, pára de lembrar então...Já entendi a história, foi mesmo uma maldição das brabas. Mas já passou, isso foi há o que uns dez anos, pra mais?

— Ah, você achou pouco? No inverno do ano seguinte adivinha como eu estava?

— Outra dor?...Deixa eu pensar...Ouvido de novo? Enxaqueca?

— Não...no ano seguinte eu estava grávida. Ou seja: o normal é fazer xixi a cada 5 minutos, mas além de eu sentir sede o tempo todo, estava bem frio.

— Deve ter ficado bem pior...

— Bem pior. A ideia de usar fralda deixava de ser uma sugestão engraçadinha para uma possibilidade real. Sem falar a dor nas costas, que no frio...

— Ok, tá bom, entendi...nada de frio.

— E no ano seguinte? Estava com um bebê nos braços. Fralda vazando, roupinhas sujas em dobro, a dificuldade em acertar a temperatura da água do banho, dor de ouvido, garganta inflamada, febre... Depois que o Ian nasceu, todo ano, quando o inverno está chegando já começo a ficar apreensiva.

— Eu realmente devia ter te levado para patinar no Central Park...

— Acho melhor não. E se a maldição ainda estiver forte? Zero condições de ir patinar sobre um lago congelado. E o Ian era pequeno demais. E ano passado eu estava grávida. E agora temos a Izzy.

— E o que a maldição tem a ver com isso?

— Depois dos 30 não há inverno suportável, Shoo. Aposto que vou ser daquelas velhinhas com gota, que quando esfria reclama de dor nas juntas esfregando as mãos sobre os joelhos numa cadeira de balanço...

— Ah, sem drama, vai...Logo as crianças vão poder brincar com bolas de neve...

— ...E eu vou pegar uma pneumonia.

Norman respirou fundo do outro lado da linha. Mas não ia se dar por vencido tão facilmente.

— Vamos levar elas para patinar no gelo...

— E o gelo vai trincar bem debaixo de mim e vou cair no lago congelado. Não se pode subestimar uma maldição, Shoo. Não é sábio, nem prudente.

Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.Onde histórias criam vida. Descubra agora