Cartas 2

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- Essa foi muito fofa... - Ally comentou enquanto devolvia para ele. você devia ter enviado.

- Bom, você sabe... - ele riu corado de novo. - Não sabia ainda o quão íntimos estávamos sendo, na verdade. Achei melhor guardar para enviar depois, mas pareceu fora de contexto depois de um tempo... E aí ficou junto, guardada.

- Próxima?

Ally se inclinou de novo, pegando outro calhamaço menor preso por um clipe.

- Você gastou um bocado com materiais de escritório aqui, não?

- Muitas cartas, muitos clipes...

"15 de Dezembro,

Caro Norman,

O ano está quase acabando, faltam apenas dez dias para o Natal. Sempre amei essa época do ano, mas esse ano está difícil. Estou mais uma vez triste e desapontada com as pessoas. Sério. Você não imagina o quanto pode ir longe a estupidez de uma pessoa. Quando eu acho que já tive mais que o suficiente, sempre acontece alguma coisa para me dizer que não acabou ainda e que sempre pode piorar. Principalmente quando se trata de violência, misoginia, e conceitos mais que ultrapassados que deviam estar mortos e enterrados sem nem ossos mais para contar a história. Uma das mulheres do abrigo que eu estava ajudando, com um bebê de 3 meses e um filho de 8 anos havia recusado as investidas de um cara que mora próximo do abrigo. Ele entrou lá e a matou com três tiros. Ela estava com o bebê no colo. Quando soube, fiquei tão furiosa que queria encontrar esse cara pessoalmente e ver se ele teria coragem de vir me levantar a mão só para mostrar que o estrago que ele fez com essa mulher e com essas duas crianças não ficaria barato. Mas infelizmente parece que antes mesmo que alguém chamasse a polícia ele se matou ali mesmo. Porque não bastava matar a mãe com o bebê no colo e o filho do lado, né? tinha que se matar na frente de todas as outras crianças que estavam ali. Nenhuma criança deveria ver violência.

Estou tão cansada disso. É sempre algo como "mulheres, não deixem nenhum homem contrariado". Não tem nada a ver com relacionamento, nem com amor, nem nada disso. É só controle. Eu já sabia disso. Eu sabia disso quando o cara me bateu, quando o outro invadiu a minha casa, quando eu terminei o namoro com outro cara e ele me seguia para ver com quem eu estava ficando (ele cismava que eu tinha traído ele - mas não, só estava cansada de ser manipulada e controlada por ele e queria poder cuidar da minha vida. É pedir muito?).

Desde quando finalmente consegui o divórcio e vim morar com a minha mãe, uma coisa ficou muito firme em mim, e determinei a partir dali uma coisa: que chega de relacionamentos. Não há ninguém em quem eu possa confiar. E mesmo que haja até eu encontrar, vou ter que me colocar a risco se quiser mesmo encontrar alguém. Não vale a pena. Não estou mais me colocando em risco (e até mesmo isso é de moral questionável)Em algum momento a gente se envolve demais com a emoção que o outro causa na gente e depois de alguns meses, acaba que a cortina de fumaça dessas ilusões desmancha e percebemos que nunca se tratou de amor. Não se amava a pessoa e sim o que ela causava, sabe? E eu cansei desse jogo.

Porque é nesse ponto, quando toda essa euforia acaba que precisamos lidar "adequadamente" com a frustração. O ideal seria que pelo menos começasse uma boa amizade, mas na maioria das vezes (pelo menos no meu caso) acontece assim: uma enorme briga porque o coração do outro ficou frustado que eu não proporciono mais aquela sensação toda de bem-estar quando me recuso a ser propriedade dele. E a frustração é bem parecida com a de um viciado em drogas que se mantém sempre perto do traficante para garantir que sempre terá uma nova dose. E se eu não desperto mais aquela sensação de novo, não faz mais sentido ficar perto de mim. Mas ao mesmo tempo já tem um novo vício, que é em me controlar.

Talvez eu tenha alguma culpa nisso. Quando percebo que estão "investindo pesado" em mim, se torna difícil para eu me permitir apaixonar. Por que na verdade, eu sei, desde o começo que nada disso é amor na verdade. É apenas...paixão? Não...nem isso. É só diversão mesmo.

Isso ficou bem mais claro depois que meu filho nasceu. Porque às vezes eu acabo atravessando um puta inferno por causa dele, mas basta um sorriso cheio de gengivas, ou sentir a mãozinha dele segurando a minha enquanto ele dorme que toda a lembrança do inferno que acabei de passar desaparece completamente. E fico pronta para encarar outro, se for preciso. E só ele tem um poder desse sobre mim. Não importa como eu acabe me sentindo às vezes, eu sempre acabo me esforçando até a última gota para ser a mãe que ele merece. É a única vez que eu conheci um amor totalmente incondicional de verdade. O resto é conversa para levar para a cama e tentar manipular, só isso.

Eu sei que pode parecer loucura isso, mas na verdade eu acho que não deve existir nenhum outro amor além desse. Não que eu tenha desprezo por amor romântico, sabe? É só que eu tentei muito, e por muito tempo encontrar isso e me custou tanto dinheiro, quando não custou dinheiro, custou a minha sanidade, a minha segurança, integridade física...e aí eu acabei desistindo. Se eu acredito que existe? Acredito sim, mas não é pra mim, mesmo. E tá tudo bem assim mesmo. E talvez isso possa mudar algum dia, não que eu acredite nisso, mas tudo é possível. E caso isso aconteça, só tenho uma regra, sagrada e entalhada em pedra: "Não sairás com um homem (ou mulher, vai saber) que vosso filho não aprove!". Porque é outro medo enorme: se me machucarem, afetará meu filho. E ele precisa de mim por inteiro, não faltando um pedaço que algum mané tomou por aí. (...)"

- Ok...chega de ler essa...

- Por quê? É uma das minhas preferidas.

Agora Ally quem corava.

- Eu não gosto. Eu sei porque eu escrevi isso. O que eu estava pensando, o que eu estava lembrando. E é aquela parte da minha vida que você sempre insiste que a partir de quando eu estou aqui com você, acabou, lembra? Você quem disse.

Norman olhou para ela de novo daquele jeito, a boca um pouco aberta, pensando no que dizer ao mesmo tempo que parecia não acreditar no que ouvia.

- Eu preciso me lembrar mais vezes da sua memória.

O canto da boca de Ally se esticou com um meio sorriso enquanto continuava olhando os papéis. Norman riu enquanto puxava sua cabeça para seu peito.

Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.Onde histórias criam vida. Descubra agora