A Hora

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Foram incontáveis as vezes que Ally tentou de todas as maneiras se concentrar nas coisas que precisava ou queria fazer, mas estava impossível. Em retrospecto, tudo aquilo devia ter sido um sinal: Ian, até então uma criança extrovertida e independente (às vezes até demais para Ally) exigia colo o tempo todo, se recusava a fazer coisas simples como ir ao banheiro ou comer sozinho.

Se algo ou alguém deveria ser o indicativo de tudo que iria mudar a partir daquele dia, estava tudo óbvio demais para ser percebido tão facilmente. Naquela tarde, Norman iria ao restaurante com Greg. Não o que haviam comprado, pois estava em reforma e esperavam inaugurar em breve. Mas o pequeno restaurante de beira de estrada onde Jeffrey e Iza haviam se conhecido ainda estava lá, mesmo que fosse um pouco mais longe. Ally estava relutante em ir junto, mas além da insistência do Norman, esperava que levando Ian para um passeio um pouco mais longo, diminuísse um pouco a "manha" dele.

Tão logo entraram no carro, já havia um aviso de que essa esperança não duraria muito, pois tiveram que parar no meio do caminho para que Ally passasse para o banco de trás para ficar ao lado do menino. Ele não parava de chorar e chamar por ela, entre protestos de nível mais dramático como "não quero ficar sozinho" e "você não gosta mais de mim".

No restaurante também não foi muito mais fácil. Norman conversava com Greg com Ian sentado no seu colo para que ela pudesse pelo menos comer.

Todos haviam tentado ajudar: Norman ficou com ele no colo, tentou levar ele para brincar na área do estacionamento quando saiu para fumar, Greg tentou brincar de desenhar nos guardanapos de papel, até mesmo uma simpática garçonete quis mostrar para ele a área dos funcionários, mas Ian estava irredutível: nada era mais atraente, não havia nenhum outro lugar no mundo em que queria estar que não fosse o colo da mãe, ou pelo menos ao lado dela.

Só durante a volta que o Pequeno deu um cochilo curto no carro, mais porque toda aquela manha deveria ter exigido um pouco mais de energia do que por sono mesmo. Mesmo assim, adormeceu no carro segurando o braço de Ally.

- Isso não é normal...ele nunca foi dramático assim. Será que aconteceu alguma coisa na escola, ou...?

- Não sei, Shoo. Também estou preocupada. E cansada, diga-se de passagem. Ele está exigindo de mim um pouco mais do que eu aguento hoje.

- Não precisa falar assim. É só um dia, talvez hoje à noite, depois de uma longa noite de sono ele esteja melhor amanhã.

Voltando para casa, Norman seguiu para o escritório. Havia ainda algum trabalho a fazer. Propostas de filmes, contratos da produtora e papeladas de todos os tipos. Ally estava cansada demais de todo aquele exercício com o filho para poder trabalhar. E isso desanimava, pois sabia que em breve, teria que enfrentar outra vez um longo hiato até poder retornar ao trabalho.

Balançou a cabeça tentando afastar os pensamentos como se estivessem pendurados na ponta dos cabelos enquanto dobrava pela milésima vez as roupas da bebê e guardava no armário. Se dependesse de Norman ele teria montado uma casa à parte para a "princesinha do papai" mas Ally era irredutível com certas coisas. Não precisava de nenhuma "malinha do bebê", afinal o bebê não iria para lugar nenhum, nem uma seção inteira da Carter's para cada dia da semana e cada estágio de desenvolvimento do bebê. Quando Ian nascera, foi para a maternidade com a roupa do corpo, nenhuma mala e tinha somente a pasta com os exames recentes nas mãos. Por que, se quando o Ian nasceu, fora de casa ela não havia preparado nenhuma mala, que sentido fazia preparar uma mala para um bebê que nasceria em casa? (Havia sido uma longa discussão contra Norman e Iza a respeito disso quando mencionaram talvez um "dia de compras" para o bebê).

Talvez acontecesse algum percalço e precisassem correr para o hospital. Mas Ally sabia que isso não iria acontecer, sabia em cada fibra, e mesmo que estivesse errada, era apenas uma questão de Iza ou Norman pegarem algumas roupinhas e fraldas que haviam no armário, não era nenhum tipo de missão de resgate de refugiados. Ally não entendia o alvoroço. Se ela mesma não surtava em preocupações, porque todos estavam surtando?

Se divertiu com o pensamento de tudo que Norman faria se ela não tivesse puxado o freio. Provavelmente antes dos cinco anos, Izzy já teria a primeira moto, uma bicicleta, um carro movido a pilha e até um séquito de damas de companhia. Ele era capaz disso.

Pela vigésima vez entrou no quarto do filho, conferiu se estava dormindo ainda e pela trigésima vez dobrou e empilhou as toalhas que havia lavado pela manhã. Foi até o quarto e estendeu pela trigésima vez o edredom sobre a cama e organizou o banheiro.

Desceu e passou a mão pela décima vez no balcão da cozinha, vendo uma pequena manchinha de gordura que logo pegou a esponja e esfregou até que a bancada estivesse impecável. Olhando distraída para a frente, viu que a poltrona na sala estava um pouco fora de lugar, talvez tivesse acontecido quando Ian estava brincando ali.

Norman estava no escritório, a sala depois da janela enorme. Pela porta entreaberta via Ally passando de um lado para outro.

- Shoo! O que você está fazendo?

- Só arrumando aqui.

- Arrumando o quê? - Norman se levantou e foi em direção à porta. Ally estava espalhando almofadas e travesseiros no peitoril da janela. - O que você está fazendo?

- Já disse, só arrumando.

Ele olhou ao redor, os braços abertos e as palmas viradas para cima.

- Mas arrumando o quê? Está tudo em ordem aqui!

Ela não respondeu, apenas passou por ele com uma almofada enorme que já havia mudado de lugar quatro vezes.

-Olha aqui, Shoo. Senta um pouquinho aqui. - ele a puxou para se sentar no peitoril da janela. - Não é o seu lugar favorito? Então...vamos ver...fique aí, quietinha, tá bom?

Virou-se para a prateleira onde estavam alguns dos livros de Ally. Olhou um por um, coçando e puxando a ponta da barba entre os dedos. - Aqui! Pelo amor...leia isso e fique parada um pouco...pelo menos até o Ian acordar.

- De novo você achando que eu sou de vidro por causa do bebê, né...

- Não, não dessa vez. É só que eu preciso me concentrar no que estou fazendo e você está me enlouquecendo enquanto fica andando de um lado para o outro. É por você sim, mas pela minha sanidade também. Fica aí um pouco, descansa e leia um pouco. Tudo bem?

- Norman, eu tenho um monte de coisas pra fazer.

- Tudo bem, você faz depois...o que você tem que fazer agora é NADA.

Ficou sentada ali olhando para ele de baixo para cima, como uma criança de castigo.

- Tá bom, ué...já que é assim...

Norman voltou para o escritório, se concentrando em onde havia parado na leitura do script. Não demorou mais do que alguns minutos quando estava ouvindo passos de novo, indo e voltando pela sala.

- Priscila, eu não falei que era para descansar?

Ela não respondeu. Apenas continuava andando. Norman tentou mais uma vez se concentrar na leitura, mas os passos não paravam.

- Shoo, qual é...é sério...você precisa descans...

Interrompeu-se quando viu que Ally não estava arrumando nada. Ao contrário, parecia que toda a neura em organizar a casa agora se transformou em um empenho de espalhar todas as almofadas pelo chão. Estava de costas para ele, os braços esticados apoiados na bancada da cozinha, a cabeça inclinada para a frente.

- O que aconteceu aqui?

Olhando para ele com o canto do olho, respirou fundo.

- Nada. absolutamente nada. Só aquela cólica chata que a gente sente quando começa a ter contrações...acho que a Izzy chega hoje, no mais tardar, amanhã cedo...

Problemática- (Sometimes) Bad Can Do You Some Good.Onde histórias criam vida. Descubra agora