Ela parou de falar, e eu terminei a frase para ela.
— Você não sabe o que fazer.
A culpa estava escrita claramente no rosto dela.
— Está tudo bem — eu disse. — Sem você, não sei o que ela faria.
Ela acenou com alívio antes de desviar o olhar. — Estou feliz que você esteja em casa — ela começou hesitante, — queria falar com você sobre essa situação. — Ela escovou um fiapo invisível em sua roupa. — Conheço um lugar ótimo em que poderiam cuidar dela. Os funcionários são excelentes. As vagas são raras, mas conheço a diretora, e ela sabe quem é o medico da sua mãe. Sei como é difícil ouvir isso, mas acho que é o melhor para ela, espero...
Quando ela terminou, sem terminar a frase, percebi que se preocupava genuinamente com minha mãe, e abri a boca pare responder. Mas não disse nada. Não era uma decisão tão simples como parecia. A casa dela era o único lugar que minha mãe conhecia o único lugar em que ela se sentia confortável. O único lugar em que sua rotina fazia sentido. Se for para o hospital a apavorava, ser obrigada a viver em lugar novo provavelmente a mataria. A questão resumia-se não a onde ela morreria, mas como morreria. Sozinha em casa, onde dormia em lençóis sujos, e possivelmente pereceria de fome? Ou entre pessoas que a limpariam e a alimentariam, em um lugar que a aterrorizava?
Com um tremor na voz que eu não conseguia controlar, perguntei:
— Onde fica?Passei as duas semanas seguintes cuidando da minha mãe. Fiz o melhor que pude, lia a Greysheet quando ela estava acordada e dormia no chão ao lado de sua cama.
Ela se sujava todas as noites, e tive de comprar fraldas geriátricas para sua vergonha.
Ela passava a tarde toda dormindo.
Enquanto ela repousava no sofá, visitei várias clínicas. Não apenas a que a vizinha tinha recomendado, mas todas as outras em um raio de duas horas. No final, a vizinha tinha razão. O lugar que ela mencionara era limpo, os funcionários pareciam profissionais e, o mais importante, a diretora parecia ter um interesse pessoal em cuidar da minha mãe, não sei se por causa da vizinha ou do médico que a atendia.
O preço não foi um problema. A clinica era notoriamente cara, mas como minha mãe tinha aposentadoria, Previdência Social, Medica e seguro saúde privado (era fácil imaginá-la assinando na linha pontilhada indicada pelos vendedores de seguros sem saber ao certo o que estava pagando), tive certeza que o único custo seria emocional. A diretora quarentona de cabelos castanhos, cujos modos gentis me lembraram Mari, foi compreensiva e não pressionou por uma decisão rápida. Entregou-me uma pilha de brochuras e formulários, desejando melhoras para minha mãe.
Naquela noite, toquei no assunto da mudança com a minha mãe. Eu iria embora dali a poucos dias e não tinha escolha, não importa o quanto eu quisesse evitar.
Ela não disse nada enquanto eu falava, Expliquei minhas razões, minha preocupações, na esperança de me entender. Ela não fez perguntas, mas arregalou os olhos em choque, como se acabasse de ouvir uma sentença de morte.
Quando terminei, precisava desesperadamente de um momento sozinha.
Acariciei a perna dela e fui até a cozinha buscar um copo de água. Quando voltei para sala minha mãe estava debruçada sobre o sofá, abatida e trêmula, com o rosto entre as mãos. Foi a primeira vez que a vi chorar.
Na manha seguinte, comecei a embalar as coisas dela. Esvaziei gavetas e arquivos, armários e guarda-roupas. Na gaveta de meias, achei meias; na gaveta de camisas, sós camisas. No arquivo, tudo tabulado e ordenado. Não deveria ser surpresa para mim, porém, de certo modo, foi surpreendente. Ao contrario da maioria da humanidade, minha mãe não tinha nenhum segredo. Não tinha vícios ocultos, diários, interesses ocultos, nenhuma caixa de coisas particulares que ela mantinha só para si mesma. Não encontrei nada que jogasse luz sobre sua vida interior, nada que pudesse me ajudar a compreendê-la melhor depois que ela partisse.
Minha mãe soube então, era exatamente o que parecia ser, e de repente percebi o quanto a admirava por isso.
Quando terminei de recolher as coisas dela, encontrei minha mãe acordada no sofá. Após comer regularmente por alguns dias, ela recuperou um pouco de força. Não havia qualquer brilho em seus olhos, e notei uma pá encostada na mesa. Ela me estendeu um pedaço de papel. Era uma espécie de mapa rabiscado às pressas por uma mão trêmula, intitulado “Quintal”.— O que é isso?
— É seu — ela disse e apontou para pá.
Peguei a pá, segui as indicações no mapa até o carvalho no quintal, contei os passos e comecei a cavar. Minutos depois, a pá bateu no metal e eu encontrei uma caixa.
E mais uma, embaixo dela. E outra do lado. No total dezesseis caixas pesadas. Sentei-me na varanda e enxuguei o suor do rosto antes de abrir a primeira.
Já sabia o que iria encontrar, e fechei um pouco os olhos por causas das moedas de ouro brilhando ao sol forte do verão sulista. No fundo da caixa, encontrei o níquel búfalo 1926-D que tínhamos procurado e encontrado juntas, sabendo que era a única moeda que realmente significava algo para mim.
No dia seguinte, o ultimo da minha licença, resolvi as pendências da casa: cancelei os serviços, transferi a correspondência, consegui alguém para aparar a grama.
Guardei as moedas desenterradas em um cofre no banco. Cuidar desses detalhes tomou a maior parte do dia. Mais tarde, dividimos uma ultima tigela de sopa de frango com macarrão e legumes cozidos para o jantar, antes que eu a levasse a clinica. Desfiz as malas dela, decorei o quarto com coisas de que ela gostava, e coloquei doze anos de edições da Greysheet no chão de baixo da escrivaninha. Mas não foi o suficiente, depois de explicar a situação para a diretora, voltei a casa para pegar outros badulaques, desejando o tempo todo conhecer minha mãe o bastante para saber o que realmente importava para ela.
Por mais que eu a tranquilizasse, ela permaneceu paralisada de medo e seus olhos me dilaceravam. Mais de uma vez, fui golpeada pela constatação de que eu estava matando-a. Sentei ao lado dela na cama, consciente das poucas horas restantes antes de partir para o aeroporto.