90°

211 49 2
                                    

Não disse nada. A cena me pareceu surreal, era como ver a si mesmo em um sonho. Mariana virou para Giana.

— Querida, você leva o Igor para pegar um refrigerante? Ele não bebeu nada desde cedo. E, se você puder, talvez consiga convencê-lo a comer.

— Claro —, disse ela. Giana a beijou na testa e levantou-se da cama. Ela parou na porta. — Vamos, Igor. Vamos pegar algo para beber, ok?

Para mim, parecia que Igor processava as palavras lentamente. Finalmente, ele se levantou e seguiu Giana, ela colocou a mão nas costas dele a caminho do corredor. Quando os dois saíram, Mariana me encarou novamente.

— Isso tudo é realmente muito difícil para o Igor. Ele não está aceitando bem.

— E como poderia?

— Mas não se engane com o fato de ele balançar a cabeça. Não tem nada a ver com autismo ou inteligência. É mais como um tique que ele tem quando está nervoso. A mesma coisa quando ele começou a bater nas coxas. Ele sabe o que está acontecendo, mas é afetado de um jeito que normalmente deixa os outros desconfortáveis.

Uni as mãos. — Não me deixa desconfortável — disse . — Minha mãe também tinha as dela. Ele é seu irmão, e é óbvio que está preocupado. Faz sentido.
Mariana sorriu.

— É gentileza sua dizer isso. Um monte de gente fica assustada.

— Eu não —, disse, balançando a cabeça. — Sei que posso com ele.

Extraordinariamente, ela riu, mas isso exigiu um grande esforço.

— Tenho certeza que pode — disse. — Igor é delicado. Provavelmente muito delicado. Ele nem mesmo mata moscas.

Concordei, reconhecendo que toda aquela conversa era apenas o jeito dela de me deixar mais confortável. Não estava funcionando.

— Quando descobriu?

— Um ano atrás. Senti coceira em uma verruga na parte de trás da perna. Quando cocei, ela sangrou. Eu não me preocupei, é claro, até voltar a sangrar quando cocei de novo. Seis meses atrás, fui ao médico. Foi em uma sexta-feira. Fiz a cirurgia e comecei o tratamento com interferon na segunda feira. Agora estou aqui.

— Você ficou esse tempo todo no hospital?

— Não. Entro e saio. Normalmente, o interferon é administrado no ambulatório, mas eu e ele não nos damos muito bem. Tenho intolerância, então agora eles fazem aqui, para o caso de eu ficar muito enjoada ou me desidratar. Como aconteceu ontem.

(INTERFERON: Proteína produzida por animais usada no tratamento de câncer e de outras doenças.)

— Sinto muito — disse.

— Eu também.

Olhei ao redor e meus olhos pousaram sobre um porta-retratos barato na cabeceira da cama no qual ela e Giana aparecem em pé abraçando Igor.

— Como Giana está reagindo? — perguntei.

— Como era de se esperar. — Mariana alisou uma dobra na sua ficha do hospital com a mão livre. — Ela tem sido ótima. Não só comigo, mas também com o rancho. Ela tem de cuidar de tudo ultimamente, mas nunca reclama. E sempre que está comigo, tenta ser forte. Ela vive me dizendo que tudo vai dar certo. — Ela esboçou um sorriso amarelo. —Metade do tempo, ainda acredito nela.

Quando não respondi, ela se esforçou para sentar mais reta na cama. Ela estremeceu, mas a dor passou, e ela voltou a si. — Giana contou que você jantou no rancho na noite passada.

— Sim — disse.

— Aposto que ela ficou contente de ver você. Sei que ela sempre se sentiu mal por ter acabado do jeito que acabou, e eu também. Devo um pedido de desculpas a você.

— Não —, levantei as mãos. — Está tudo bem.
Ela sorriu irônica.

— Você só diz isso porque estou doente, e ambas sabemos disso. Se eu estivesse saudável, provavelmente você iria quebrar meu nariz de novo.

— Talvez — admiti. Ela riu de novo, e desta vez ouvi o som da doença em sua risada.

— Eu mereci —, ela disse alheia aos meus pensamentos. — Sei que você pode não acreditar, mas me sinto mal com o que aconteceu. Sei que vocês duas realmente gostavam uma da outra.

Debrucei-me, apoiando em meus cotovelos.

— O que passou, passou —eu disse.

Eu não acreditei, e ela não acreditou em mim quando eu disse isso. Mas foi o suficiente para nós duas deixarmos isso de lado.

— O que te trouxe aqui? Depois de todo esse tempo?

— Minha mãe faleceu — eu disse. — Na semana passada.

Apesar da doença seu rosto refletiu uma simpatia genuína.

— Sinto muito, Lary. Sei o quanto ela significava para você. Foi repentino?

— No final, sempre é. Mas ela estava doente havia algum tempo.

— Isso não significa que seja mais fácil.

Fiquei me perguntando se ela se referia só a mim ou a Giana e Igor também.

— Giana me disse que você perdeu seus pais.

— Acidente de carro — disse ela, forçando as palavras. —Foi...inacreditável. Tínhamos acabado de jantar com eles duas noites antes, e no memento seguinte, eu estava tomando as providências para os enterros. Antes não parece real. Sempre que estou em casa, acho que vou ver minha mãe na cozinha meu pai cuidando do jardim. — Ela hesitou, e eu sabia que ela estava revivendo tais imagens.

QUERIDA LARY (gilary)Onde histórias criam vida. Descubra agora