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Por fim, ela balançou a cabeça. — Isso aconteceu com você? Quando estava em casa?

— O tempo todo.

Ela inclinou a cabeça para trás.

— Parece que foram dois anos bem difíceis para nós duas. O suficiente para nos fazer duvidar da fé.

— Até mesmo você?

Ela deu um sorriso indiferente.

— Eu disse duvidar. Não disse que minha fé acabou.

— Não, não creio que acabaria.

Ouvi a voz de uma enfermeira se aproximando. Achei que ela fosse entrar, mas ela continuou seu caminho para outro quarto.

— Estou feliz que você veio para ver a Giana — ela disse. — Sei que soa banal, considerando tudo o que vocês duas passaram, mas ela precisa de uma amiga agora.

Minha garganta estava apertada.

— Sim —, foi tudo que conseguiu pensar e dizer.

Ela ficou quieta, e entendi que não diria mais nada sobre o assunto. Com o tempo, Mariana pegou no sono e fiquei ali sentada olhando para ela, minha cabeça curiosamente vazia.

— Desculpe não ter contado ontem — Giana falou uma hora depois.

Quando ela e Igor voltaram ao quarto e encontraram Mariana dormindo, ela fez sinal para eu a seguir até a lanchonete.

— Fiquei surpresa de ver você, e sabia que deveria ter contado, mas todas as vezes que eu tentei, simplesmente não consegui.

Havia duas xícaras de chá na mesa, já que nenhuma de nós tinha apetite.
Giana ergueu a xícara e colocou-a de volta.

— É que ontem foi um daqueles dias, sabe? Passei horas no hospital, sob os olhares piedosos das enfermeiras e... bem, parece que eles me matam aos pouquinhos. Sei que isso é ridículo, já que a Mariana vai superar, mas é tão difícil vê-la doente. Eu odeio. Sei que preciso estar presente para apoiá-la e quero estar presente, mas a questão é que é sempre pior do que eu esperava. Ela ficou tão mal depois do tratamento ontem que pensei que ela estava morrendo. Ela não parava de vomitar, e quando não saía mais nada, ela vomitava seco. A cada cinco ou dez minutos, ela começava a gemer e se mexer na cama tentando evitar, mas não podia fazer nada. Eu a abracei e confortei, mas não sei nem como começar a descrever o quanto isso me deixa desamparada. — Ela tirou o sachê de chá de dentro da água. — É assim toda vez — disse.

Fiquei mexendo na asa da minha xícara.

— Gostaria de saber o que dizer.

— Não há nada que você possa dizer, eu sei. Por isso estou contando a você. Porque sei que você consegue lidar com isso. Realmente não tenho mais ninguém. Nenhum dos meus amigos pode entender o que estou passando. Minha mãe e meu pai têm sido ótimos, mas...Sei que farão qualquer coisa que eu pedir, estão sempre se oferecendo para ajudar, e mamãe traz comida para nós. Mas toda vez que aparece, ela está uma pilha de nervos, estão sempre à beira do choro. É como se ela morresse de medo de dizer ou fazer algo errado. Por isso, quando tenta ajudar, eu que tenho de apoiá-la em vez do contrário. Odeio falar isso dela, porque ela está dando o máximo, é minha mãe e eu a amo, mas queria que ela fosse mais forte, sabe?

Lembrando a mãe dela, assenti.

— E o seu pai?

— O mesmo, mas de um jeito diferente. Ele evita o assunto. Não quer falar nada a respeito. Quando estamos juntos, conversa sobre o rancho, o meu trabalho, mas nada sobre a Mariana. É como se tivesse tentando compensar a preocupação incessante da minha mãe, mas nunca pergunta o que está acontecendo ou como eu estou suportando. — Ela balançou a cabeça. — E por fim tem o Igor. Mariana é tão boa com ele, e gosto de pensar que está ficando melhor, mas ainda... há momentos em que ele começa a se machucar ou quebrar as coisas, e eu acabo chorando porque não sei o que fazer. Não me interprete mal, eu tento, mas não sou a Mari, e ambos sabemos disso.

Nos olhamos nos olhos por um momento antes de eu desviar os meus. Tomei um gole de chá, tentando imaginar como era a vida dela agora.

— Mari contou o que está acontecendo? O melanoma?

— Um pouco — disse. — Não o suficiente para saber a história toda. Ela disse que achou uma verruga que estava sangrando. Ela não deu importância por um tempo, até que foi procurar um médico.
Ela assentiu.

— É uma dessas coisas loucas, não? Quero dizer, se a Mari tomasse muito sol, talvez eu entendesse. Mas foi na parte de trás da perna. Você a conhece consegue imaginá-la de bermuda? Ela quase nunca usa shorts, mesmo na praia, e sempre enchia todo mundo para passar protetor solar. Ela não bebe, não fuma, é cuidadosa com o que come. Mas, por algum motivo, teve um melanoma. Eles cortaram a área em volta da verruga e, por causa do tamanho, retiraram dezoito gânglios linfáticos. Dos dezoito, um deu positivo para melanoma. Ela começou o interferon, que é o tratamento padrão e dura um ano inteiro, e tentamos ficar otimistas. Mas depois as coisas começaram a dar errado. Primeiro com o interferon, depois ela teve celulite na incisão junto à virilha algumas semanas após a cirurgia.

Quando franzi a testa, ela se deteve.

— Desculpe. Estou tão acostumada a falar com médicos estes dias. Celulite é uma infecção da pele, e  a dela foi muito grave. Ela passou dez dias na unidade de terapia intensiva por causa disso. Pensei que iria perdê-la, mas ela é uma lutadora, sabe? Ela sarou e continuou o tratamento. Porém, no mês passado encontramos lesões cancerígenas perto do local do melanoma original. Isso, claro, significava outra rodada de cirurgia, e pior ainda, significava que o interferon provavelmente não estava funcionando tão bem quanto devia. Então ela fez uma tomografia PET e uma ressonância magnética, e eles encontraram algumas células cancerígenas no pulmão.

Ela olhou para a xícara de chá. Eu estava sem palavras, e me sentia exausta.
Ficamos em silêncio por um longo tempo.

QUERIDA LARY (gilary)Onde histórias criam vida. Descubra agora