A sinceridade inquestionável em sua voz me feriu, mas antes que eu pudesse refletir, ela se virou para mim novamente. A ansiedade cintilava em seu rosto, como se ela lembrasse algo doloroso. Mas logo passou.
— Você já comeu? — ela perguntou.
Eu ainda estava tentando entender o que acabar de acontecer. — Não —, eu disse. — Na verdade, não tomei café da manha, nem almocei.
Ela balançou a cabeça. — Tenho umas sobras de cozido de carne em casa. Você tem tempo para jantar?
Apesar de pensar mais uma vez que ela se casou, assenti. — Tenho sim — disse.
Partimos em direção a casa e paramos no alpendre onde se enfileiravam velhas botas de caubói cobertas de lama. Giana segurou em meu braço de modo extraordinariamente fácil e natural, apoiando-se em mim para tirar as botas Talvez tenha sido esse toque que me deu coragem para olhar verdadeiramente para ela. Apesar do ar de mistério e maturidade que sempre me atraiu, também notei uma ponta de tristeza e hesitação. Para meu coração dolorido, essa combinação a tornava ainda mais bonita.
Sua pequena cozinha era exatamente o que eu esperava de uma casa antiga provavelmente reformada meia dúzia de vezes durante o último século: chão de linóleo ligeiramente descascado perto das paredes; armários brancos funcionais e sem adornos com a superfície grossa por causa das inúmeras camadas de tinta ao longo anos e uma pia de aço inoxidável instalada abaixo de uma janela de madeira que deveria ter sido substituída anos antes. A bancada estava rachando, e encostado na parede, havia um fogão a lenha tão antigo quanto a própria casa. Em alguns pontos, notava-se a intromissão do mundo moderno: uma grande geladeira e uma lava-louças perto da pia; um microondas pendurado em canto, perto de meia garrafa de vinho tinto. Em alguns aspectos, lembrava a casa da minha mãe.
Giana abriu um armário e pegou uma taça. — Você quer uma taça de vinho?
Eu balancei minha cabeça. — Nunca fui muito de beber vinho.
Fiquei surpresa por ela não guardar a taça diante da minha negativa. Em vez disso, ela pegou a garrafa de vinho e serviu; colocou a taça na mesa e se sentou diante dela.
Sentamos à mesa e Giana tomou um gole.
— Você mudou — observei.
Ela deu de ombros. — Muitas coisas mudaram desde a última vez que vi você.
Ela não disse mais nada e colocou a taça de volta na mesa. Quando falou novamente, tinha a voz suave. — Nunca pensei que seria o tipo de pessoa que anseia por tomar uma taça de vinho à noite, mas eu sou.
Ela começou a girar a taça na mesa, e eu me perguntava o que havia acontecido com ela.
— Sabe o engraçado? — ela disse. — Eu realmente me importo com o sabor. Quando bebi minha primeira taça, não sabia o que era bom ou ruim. Agora sou bastante seletiva na hora de comprar.Eu não reconhecia plenamente a mulher sentada diante de mim e não sabia como reagir.
— Não me entenda errado — ela prosseguiu. — Ainda me lembro de tudo que meus pais me ensinaram, e quase nunca tomo mais de uma taça por noite. Mas como o próprio Jesus transformou água em vinho, acho que não deve ser um grande pecado.
Sorri diante desse raciocínio, reconhecendo como era injusto esperar uma versão dela congelada no passado. — Eu não perguntei nada.
— Eu sei — ela disse. — Mas você estava pensando.
Por um momento, o único som na cozinha era o zumbido baixo da geladeira.— Sinto muito por sua mãe — ela disse, alisando uma rachadura no tampo da mesa. — Realmente sinto. Não sei dizer quantas vezes pensei nela nos últimos anos.
— Obrigado — eu disse.
Giana começou a girar a taça de novo, aparentemente perdida no redemoinho líquido. — Você quer falar sobre isso? — ela perguntou.
Eu não tinha certeza, mas ao recostar-me na cadeira, as palavras surpreendentemente vieram. Contei sobre o primeiro ataque cardíaco, e depois o segundo, sobre as visitas que fiz a ela nos dois anos anteriores. Contei sobre nossa crescente amizade, e o conforto que sentia ao lado dela. Falei das caminhadas que ela fazia que por fim teve de interromper. Contei sobre meus últimos dias com ela e a agonia de interná-la em uma clínica. Quando descrevi o enterro e a fotografia que encontrei no envelope, ela tomou minha mão.
— Estou feliz que ela tenha guardado para você — ela disse, — mas não fiquei surpresa.
— Eu fiquei — disse, e ela riu. Era um som reconfortante.
Ela apertou minha mão. — Gostaria de ter ficado sabendo. Teria ido ao enterro.
— Não foi nada demais.
— Não tinha que ser. Ela era sua mãe, e isso é tudo que importa. — Ela hesitou antes de soltar minha mão e tomou outro gole de vinho.
— Você está pronta para comer? — ela perguntou.
— Não sei —, disse, ruborizada ao lembrar o comentário que ela fizera antes.
Ela se inclinou para frente com um sorriso. — Que tal eu esquentar um prato de cozido e vamos ver o que acontece?
— Está gostoso? — perguntei. — Quer dizer... Quando nos conhecemos, antes, você nunca mencionou que soubesse cozinhar.
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