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Porém, olhando meu pelotão, percebi de repente que estava deslocada. Meu grupo estava cheio de novatos, e apesar de considerá-los ótimas pessoas, não era a mesma coisa. Eles não eram os amigos com quem convivi no campo de treinamento e nos Balcãns, eu não tinha ido para a guerra com eles e, no fundo, sabia que nunca seria tão próxima deles quanto da minha antiga equipe. Eu era uma estranha para a maior parte, e mantive-me assim. Eu malhava sozinha e evitava contato pessoal tanto quanto possível, e sabia o que pensavam de mim ao me ver passar: eu era a velha “sargento” rabugenta, aquela que não queria nada além de garantir que eles voltariam a salvo para suas mães. Dizia isso ao meu pelotão o tempo todo enquanto treinávamos, e falava sério. Faria o que fosse preciso para mantê-los a salvo. Porém, como eu disse, não era a mesma coisa.
Sem meus amigos, dediquei-me o máximo que pude a minha mãe. Depois do período em combate, passei uma licença prolongada com ela na primavera, e mais outra licença durante o verão. Ficamos mais tempo juntas nessas quatro semanas do que nos dez anos anteriores. Como ela estava aposentada, estávamos livres para passar o dia como desejássemos. Encaixei-me facilmente na rotina dela. Tomávamos café da manha, fazíamos três caminhadas e jantávamos juntas. No meio do tempo, conversávamos sobre moedas e até mesmo comprávamos algumas. A internet tornou tudo muito mais fácil do que antes. Embora q pesquisa não tenha sido tão emocionante, não sei se fez alguma diferença para a minha mãe. Acabei conversando com vendedores com quem não falava havia mais de quinze anos, mas eles foram amistosos e prestativos como sempre e se lembraram de mim com prazer. O mundo da moeda era pequeno, percebi, e quando nossos pedidos chegavam - sempre eram expedidos via delivery noturno -, minha mãe e eu revezávamos no exame das moedas, apontando eventuais falhas existentes e geralmente concordando com a nota atribuída pelo Professional Coin Grading Service (Serviço Profissional de Avaliação de Moedas), uma empresa que avalia a qualidade de qualquer moeda. Embora minha mente às vezes vagasse para outras coisas, minha mãe era capaz de examinar uma única moeda durante horas, como se ela escondesse o segredo da vida.
Não conversávamos sobre muitas outras coisas, porém, na verdade, não precisávamos conversar. Ela não tinha vontade de falar sobre o Iraque, eu também não.
Nenhuma de nós tinha uma vida social sobre a qual discutir o Iraque não tinha me levado isso e minha mãe... bem, ela era minha mãe, e não me incomodei em perguntar.
No entanto, eu estava preocupada com ela. Nas caminhadas, ela respirava com dificuldade. Quando sugeri que vinte minutos talvez fosse muito tempo, mesmo em ritmo lento, ela respondeu que, segundo o médico, vinte minutos eram tudo de que ela precisava, e sabia que não poderia fazer nada para convencê-la do contrario. Depois da caminhada, ela ficava muito mais cansada do que deveria e levava cerca de uma hora para que a cor de suas bochechas voltasse ao normal. Conversei com o médico, e as notícias não eram o que eu esperava. O coração da minha mãe, ele me disse, sofrera um grande dano, e, na opinião dele, era um grande milagre ela estar de pé. Falta de exercício seria ainda pior.
Pode ter sido essa conversa com o médico, ou talvez eu só quisesse melhorar meu relacionamento com minha mãe, mas o fato é que, nessas duas visitas, nos demos muito melhor do que antes. Em vez de pressioná-la constantemente para conversar, simplesmente me sentava com ela em seu escritório lendo um livro ou fazendo palavras cruzadas, enquanto ela examinava moedas. Havia algo pacífico e honesto nessa falta de expectativas, e acho que minha mãe lentamente estava aprendendo a lidar com a nova situação entre nós. Às vezes, eu a pegava a me espreitar como se fôssemos estranhas.
Passávamos horas juntas, a maioria em silêncio, e foi assim, de um jeito quieto e despretensioso, que finalmente nos tornamos amigas. Muitas vezes desejei que minha mãe não tivesse jogado fora nossa fotografia, e quando chegou a hora de voltar à Alemanha, percebi que sentiria mais saudades do que nunca.
O outono passou lentamente, assim como o inverno e a primavera. A vida se arrastou sem grandes acontecimentos. Ocasionalmente, os boatos do meu eventual regresso ao Iraque interrompiam a monotonia dos dias, a ideia de voltar pouco me afetava. Iraque, tudo bem também. Mantinha-me informada sobre o que acontecia no Oriente Médio como todo mundo, mas assim que desligava a televisão ou colocava o jornal de lado, minha mente vagava para outros assuntos.
Eu tinha vinte e oito anos então, e não conseguia evitar a sensação de que, embora tivesse experimentado mais coisas do que a maioria das pessoas da minha idade, minha vida ainda estava em suspenso. Entrei no exercito para amadurecer, embora fosse possível argumentar que sim, às vezes me perguntava de isso de fato ocorrera. Eu não tinha casa nem carro; além de minha mãe, estava completamente sozinha no mundo.
Enquanto meus colegas recheavam suas carteiras com fotografias de filhos e esposas, na minha havia um único instantâneo desbotado de uma mulher que eu amei e perdi.
Ouvia os soldados falarem de suas esperanças para o futuro, enquanto eu não tinha qualquer plano. Às vezes me perguntava o que minha equipe pensaria sobre a minha vida, pois, em certos momentos, notava que eles me olhavam com curiosidade. Nunca contei a eles sobre meu passado ou abri informações pessoais. Eles não sabiam sobre Giana, minha mãe ou minha amizade com Gaab. Essas lembranças eram minhas e só minhas, pois aprendi que e melhor manter algumas coisas em segredo.
Em março, minha mãe teve um segundo ataque cardíaco, que levou a uma pneumonia e a outra temporada na UTI. Depois que ela foi liberada, começou a tomar um medicamento que a impedia de dirigir, mas a assistente social do hospital me ajudou a encontrar alguém para comprar os mantimentos de que ela necessitava. Em abril, ela voltou para o hospital, onde foi informada que teria que desistir de suas caminhadas diárias. Em maio, ela estava tomando uma dúzia de comprimidos diferentes por dia e passava a maior parte do tempo na cama. Suas cartas tornaram-se praticamente ilegíveis, não só porque ela estava fraca, mas também porque suas mãos começaram a tremer. Depois de insistir e implorar ao telefone convenci uma vizinha (uma enfermeira que trabalhava no hospital local) a cuidar dela regularmente, e suspirei aliviada contando os dias até minha licença em junho.

QUERIDA LARY (gilary)Onde histórias criam vida. Descubra agora