Capítulo 9

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— Dois jantares na mesma semana, Dr Borges? — Tatiana sorriu ao abrir a porta de casa e dar de cara com Micael, dois dias depois do primeiro encontro. — Entre vocês, homens, não há a regra de uma semana no mínimo?

— Eu nunca fui muito de respeitar regras. — Sorriu e lhe entrou a caixa de Ferrero Rocher. — Espero que goste.

— São meus preferidos. — Ele sorriu ainda mais. — Como adivinhou?

— Eu tenho um certo talento pra isso. — Disse nada modesto. — Será que eu vou ficar aqui do lado de fora o restante da noite?

— Depende das suas intenções, isso aqui é uma casa de respeito. — Brincou apontando pra própria casa.

— Então ferrou, minhas intenções são as piores possíveis! — Deram risada e então entraram na casa. — O cheiro está maravilhoso.

— Modéstia à parte, eu cozinho muito bem! — Guardou os bombons na geladeira. — Eu amo cozinhar.

— Sabe que eu também gosto? Acho relaxante. — Deu de ombros. — Não penso muito, vou mais no intuitivo. Ver tomografia de crânio o dia inteiro pode deixar a gente doido, sabia? — Brincou.

— Você escolheu uma especialização interessante. — Ela se escorou na pia e cruzou os braços. — Teve algum motivo especial? Seu pai é cardiologista, não é?

— Sim, ele é cardiologista, mas não exerce há anos. — Deu de ombros. — Não deve nem saber segurar um estetoscópio mais, se enfiou na burocracia do hospital e nunca mais conseguiu sair.

— Mas o hospital é da família de vocês, não é? — Ele assentiu. — Em algum momento você vai ter que assumir a administração e parar de ver tc de crânio. — Ele fez uma careta. — Ué gente?!

— Eu tenho mais três irmãos. — Contou a mulher que ouvia interessada. — Marcelo é mais velho, contrariando tudo o que a nossa família representa, se formou arquiteto. Lidiane veio depois de mim, ela é fonoaudióloga. — Rolou os olhos. — Ninguém merece.

— Lidiane? A Drª Lidiane é sua irmã? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Fala sério!

— Doutora? Ela nem sequer é médica. — Bufou. — Mas é sim, Lidiane não usa Borges como sobrenome porque ela diz que não quer ser ligada a mim e ao meu pai. — Bufou outra vez. — Idiota.

— Ah, não fala assim, ela é um amor de menina. — Disse empolgada. — Nós, que não possuímos CRM, temos uma sala separada, não sei se sabe.

— Sei, mas é justo, a gente não pode se misturar. — Implicou. — Não sei nem o que estou fazendo aqui.

— Ah, filho da mãe! — Arremessou nele um pano de prato. — Dá o fora da minha casa!

— É ruim hein, com o cheiro que tá vindo desse forno, eu só saio daqui depois do jantar. — Sorriu de canto. — Você sabe que nenhum de vocês é proibido de entrar na sala de descanso dos médicos, não é? Tipo, é aberta pra todos os funcionários do hospital, desde que atendam alguma coisa.

— Você não vê como seus colegas doutores olham pra gente quando entramos lá?! — Ele balançou a cabeça. — O purificador de água da gente ficou ruim, levaram pra manutenção, eu ousei entrar lá, nossa senhora, o que recebi de olhares de ódio, nunca mais entro lá.

— Não tenho costume de ficar lá. — Deu de ombros. — Pra falar a verdade quase nunca estou atoa, mas nesses raros momentos, eu vou ver a Sophia.

— E antes do acidente? — Perguntou curiosa.

— Antes eu tentava ver a Sophia. — Deu risada ao se lembrar. — A vida era bem corrida.

— Fala sério, vocês são casados, moravam na mesma casa. Não é possível!

— Ah, era bem possível. — Suspirou. — Sempre tive a agenda lotada demais e quando a Sophia se formou e realmente começou a atender no pronto socorro de lá, foi pelo mesmo caminho. Quando tirávamos plantões juntos, raramente a gente se via, e também era muito difícil estarmos os dois em casa ao mesmo tempo.

— Que loucura é essa?! — Cruzou os braços indignada. — Não tinham tempo um pro outro e aí quando sobrava o que fosse, tinha que dar atenção a Maitê?

— Pois é. — Suspirou com as lembranças. — Se eu soubesse que ia acontecer o que aconteceu, eu teria marcado menos compromissos e aproveitado o tempo com a minha família. — Desviou o olhar pra parede. — Era o que estávamos fazendo no fatídico dia.

— Você não me contou.

— É que me faz mal lembrar. — Suspirou, falava bem baixo. — Era véspera de feriadão, decidimos que estávamos merecendo uma pequena lua de mel. Cancelamos os compromissos até a quarta, dia dezesseis de novembro, estávamos empolgados com a chance de ficarmos quatro dias sozinhos.

— Não precisa me contar, se não quiser. — Se aproximou e segurou a mão de Micael por sobre a mesa. — Eu estou vendo como é que você está.

— Deixamos a Maitê com a Branca e então fizemos as malas e partimos. Brincando, sorrindo, conversando durante a uma hora de viagem que tivemos, até que ela decidiu soltar o cinto pra alcançar um lençol no banco de trás.

— Micael...

— Um lençol. — Repetiu. — A Sophia está em cima de uma cama há quase três anos por causa de um lençol. Sabe a imagem do último momento? Me assombra até hoje. Volta e meia eu tenho pesadelos com aquele acidente e acordo no meio da madrugada.

— Você devia fazer terapia.

— Minha terapia é trabalhar. — Forçou um sorriso. — Um lençol. — Repetiu balançando a cabeça. — Você acredita que eu me arrepiei na hora em que ela soltou o cinto, como se fosse um aviso?!

— Mas não falou nada?

— Eu briguei com ela. — Encarou a mulher a sua frente. — Talvez o que mais me doa seja isso, nossa última conversa foi uma briga por causa do cinto.

— Eu sinto muito! — Ela se levantou e foi até ele lhe dar um abraço solidário. — Sinto muito, de coração. E me desculpa ter deixado o assunto chegar nisso!

— Não faz mal. — Fungou, mas não estava chorando. — Um dia eu ia te contar.

— Tá legal, vamos mudar de assunto. — Se afastou e foi tirar a comida do forno. — Você falou da sua família, mas faltou o caçula.

— Luan. — Disse ainda desanimado. — Ele é claramente o filho que mais leva jeito pra tocar a parte administrativa do hospital. Ainda bem que um dos quatro veio com o talento.

— Pois é, pro alívio do seu pai. — Tati colocou a comida em cima do fogão. — A janta está pronta.

— E como eu já disse, com um cheiro delicioso, mas nesse momento, se me permite, eu gostaria de estar jantando outra coisa. — Se levantou e foi até ela, iniciando um beijo quente, precisava esquecer aquela história do acidente de uma vez.

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