Um estranho em minha vida

66.

-É sim, eu só demorei para perceber. Não importa o que eu faça, no seu mundo eu nunca vou ser alguém. -É nessas horas que eu preciso de um tradutor que fale a língua Zack.

-Que mundo? Do que você está falando? Só existe um mundo. -Falei sem entender nada.

-Existem vários mundos, Fernanda. Para você, um só. Mas existe o mundo que os pobres não podem sonhar em chegar perto, o mundo em que os negros são discriminados e julgados pela sua cor, mundo que as mulheres precisam a todo instante estarem provando que são tão capazes quanto os homens para terem o mínimo de respeito, mundo que aqueles que são da comunidade LGBTQI+ são excluídos e tratados como doentes... As pessoas são más e estão te julgando o tempo todo! Você acha que eu não percebi o jeito que aquela mulher me olhou? Como se eu fosse sujo e um penetra na casa dela.

-Eu sei que as pessoas são ruins, mas me admira você me enquadrar nelas. Eu que sempre te ajudei, fiquei do seu lado quando ninguém mais ficou, cuidei dos seus machucados quando estava caído no chão da minha casa. 

-Eu não precisava da sua caridade. -Ele cuspiu as palavras em mim. -Me viro sozinho desde os meu 16 anos.

-Só queria te ajudar... -Por que ele estava me julgando tanto? O que de tão ruim eu tinha feito para ele me comparar a pessoas que eu tanto evitei a minha vida toda? Será que alguma coisa aconteceu em sua vida e ele está estressado? Mas isso não é um motivo que justifique ele falar um monte de merda para mim, é? Eu só queria pode ajudá-lo e entendê-lo... Eu queria lhe dar um abraço e falar que tudo ficaria bem, mas eu não podia. Não podia me humilhar para uma pessoa que acha que sou um monstro.

-Com o dinheiro que gastou em mim, ajudava muitas instituições. Por que concentrar tanto dinheiro em uma pessoa só?

-Você não sabe o que eu faço com meu dinheiro e quantas causas sociais eu contribuo. E eu não sei, Zack. -Minha paciência se fora e eu cuspia as palavras. -Não sei porque quando te vi desacordado e com a cabeça sangrando no meio de uma rua escura eu resolvi te dar assistência! Não sei porque gastei horas de todos os meus dias indo te ver naquela merda de hospital e fiquei lendo para você! Eu só fiz! E não importa o quão idiota você está sendo agora, eu faria tudo de novo. Só pelo prazer de ver que eu consegui ajudar uma pessoa. Eu não posso mudar o mundo, Zack, mas eu posso tentar mudar a vida de algumas e é o que eu vou continuar fazendo até a última batida do meu coração. -Eu tinha noção que estávamos no meio da rua e que passavam pessoas ali. Não sabia se alguém filmava tudo aquilo, mas conseguia ver o Miguel de rabo de olho e tinha certeza que, caso alguém tenha filmado, ele conseguiria não fazer aquilo ir ao ar, afinal, eu tinha o que mais o Zack repugnava, dinheiro... -Por que está me tratando assim? -A minha guarda caiu. Eu vim aqui falar com ele e até tentaria o convencer que o Daniel era passado para mim (coisa que iria completamente contra os meus princípios de dar satisfação para alguém). Eu não queria discutir com ele, nunca quis, mas ele não parecia se importar em cuspir tudo de ruim que pensava de mim no meio da rua.

Quando percebi estava chorando. Não por tristeza ou por felicidade, eu estava chorando de raiva.

-Porque eu sou assim, Fernanda. É assim que eu trato as pessoas e deve ser por isso que todo mundo se afasta de mim. -Tinha dor em suas palavras, mas eu não consegui me sentir tocada por elas. -Você não é diferente das pessoas que vivem a sua volta. Acha que tudo se compra com dinheiro e que pode acabar com o sofrimento de alguém só porque tem um monte de número na sua conta bancária. Mas ai vai uma realidade, há coisas que o dinheiro nunca vão poder suprir e não importa o quanto dele você tenha. -Por que ele dizia tudo aquilo?

Eram tantas perguntas, um Zack estranho e nenhuma resposta...

-Você não é assim e eu não sei o que deu em você! -As lágrimas escorriam. Eu queria que elas parassem, mas o fato de eu não conseguir segurá-las, fazia com que mais lágrimas escorressem.

Ele deu um passo em minha direção e eu dei dois para trás. Me repreendi no segundo seguinte, pois reparei que estava com medo dele e aquilo partiu meu coração. Ele deu mais um passo em minha direção, em seu olhar, que estava de encontro com o meu, não transmitia sentimento. Prazer, angústia, felicidade, dor... Era um claro mar azul de nada...

-Não se aproxima de mim. -Estiquei o braço e ele parou de andar, foi então que ele reparou o meu medo e tudo que eu via em sua postura e seus olhos se transformou em culpa. -Não se aproxima nunca mais de mim. -Limpei minhas lágrimas. Eu não tinha mais controle sobre minhas palavras e seria bem possível que eu me arrependesse de metade delas.

-Acho que por hoje está bom de show. -O Miguel me abraçou por trás. Virei para o seu peito e voltei a chorar. -Acho que é melhor ir para casa, Zack. Parece que não está tendo um bom dia.

-Não me importo com o que você acha, cara. -O Miguel respirou fundo e me abraçou mais forte, tentando transmitir um pouco da sua tranquilidade.

-Tudo bem, só não faz mais nada hoje que vá se arrepender amanhã. -Ele deixou o Zack ali e entrou comigo dentro de um carro. Eu não sabia para onde eu estava indo, mas só de estar com o Miguel, sabia que tudo ficaria bem...