Não Direi Que É Paixão

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Não Direi Que É Paixão - Hércules

O quarto amanheceu como de costume: através das cortinas fechadas, a claridade entrava sorrateira como um ladrão, iluminando com sutileza um dos grafites nas paredes: a lâmpada mágica sombria. As cores eram fortes: vinho e marrom dourado, um sombreado e um detalhe preto ali e aqui contribuíam com o efeito belo do desenho. As areias que vazavam do artefato mágico percorriam a maior parte do quarto. O lado na penumbra, já parecia uma colcha de retalhos em preto e branco. Tigre, onça, dálmatas. Uma estampa, sumindo numa curva, no surgimento de outra estampa. Como um grande casaco de pele.

Jay roncava na cama de lençóis negros enquanto, na outra cama, Carlos babava em seu travesseiro vermelho. Os dois profundamente adormecidos naquela manhã de terça-feira.

A noite havia sido encerrada logo após a conversa com Mal. Não fora uma discussão, muito menos ocorrera tarde da noite, mas desgastara demais do psicológico, do emocional dos quatro jovens delinquentes, por isso, a sua maneira, cada um dos quatro estava profundamente entregue ao reino de Morfeu.

Carlos estava tendo um sonho agradável com Dude. No sonho, o cachorro falava. Os dois conversavam caminhando pelo asfalto de uma estrada não movimentada sobre as torturas sofridas nas bases da infância e de como a vida parecia estar melhorando aos poucos. Ao fim da estrada, um barranco, um enorme desfiladeiro; sentaram-se, o menino com as pernas balançando, o animal próximo de um afago. O cachorro de pelagem amarronzada contou que, o melhor que pode acontecer em sua vida, foi encontrar Jane, ou melhor, foi ser encontrado por ela – que a moça o salvara de um destino terrível.

Imediatamente o sonho materializou a menina bonita, tímida e encantadora ali, na frente de ambos. Seu corpo muito curvilíneo coberto por longos tecidos fluídos num branco cada vez mais ofuscante. Seus cabelos em cachos castanhos como chocolate meio amargo caindo em seus ombros nus.

Carlos levantou-se ao vê-la, sem notar que o cão correra para perto dela.

Aos pés da moça o abismo não existia, somente o mais puro algodão até que Jane estivesse sobre uma nuvem que alçava voo junto ao cachorro.

-Não... Jane, espera! – ele tentava chamar, mas a moça sorriu ternamente para o animal, como se o menino não existisse, e lhe deu as costas. Carlos não notou que o asfalto aos seus pés queimava, literalmente pegava fogo, um fogo vermelho como os batons de sua mãe... O asfalto cedeu. Ele caiu no que seria a lava do ódio de Cruella ao vê-lo com um cachorro, ao vê-lo olhando com tanta admiração para alguém que não era mau... – JANE!

Ao gritar no sonho, acordou no quarto, sobressaltado, sentindo a pele queimar.

Aparentemente não gritara nada na realidade; graças ao caos. Seria vergonhoso demais acordar assim. Limpou a baba com as costas da mão, e jogou o rosto de encontro aos joelhos tentando controlar a respiração ofegante.

Quando mais calmo, limpou a boca mais uma vez, esfregou os olhos e, ainda trêmulo, procurava ver a hora. Estava no horário; faltavam sete minutos para o despertador tocar. Levantou e antes de jogar Jay no chão como de costume e seguir para um banho, arrancou os lençóis e fronhas com ódio: aquela cor fora demasiado forte em seus sonhos, interferira demais quando antes a noite estava tranquila; fora que, estava encharcada de suor.

Naquela manhã quis um banho longo. Tão longo que chegou a sentar no chão, nos azulejos frios em contraste com a água tão quente quanto o fogo de seu sonho...

Sonho...

Sonhara com Jane. Sonhara com uma linda menina e o sonho não fora nada erótico como geralmente eram seus sonhos com meninas adoráveis. Sentira-se em paz ao vê-la, a mesma paz que sentira quando Mal declarara que jamais os prejudicaria intencionalmente. A paz de uma segunda chance. Claro que isso mudou rápido demais. A paz foi consumida em dor e em chama conforme a menina se distanciava.

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