CAPÍTULO 82

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Gwyn parou e, pela primeira vez, enxergou todo o sangue em suas mãos. A pedra, que havia ficado rubra, caiu com um baque surdo quando ela a soltou e se afastou rápido do corpo.

Ela tentou, realmente tentou desviar o olhar, mas tudo o que conseguia enxergar era a sangue, uma cabeça aberta. Um crânio exposto, mãos dilaceradas.

Ainda estava tentando desviar o olhar quando o vácuo que parecia ter se infiltrado em seus ouvidos sumiu, e só então, ouviu os soluços entrecortados.

A fêmea estava encolhida contra a parede, os braços sobre a cabeça, com os olhos fechados e tremendo tanto que temeu que fosse se partir. Ela parecia um espelho que refletia uma memória antiga.

Gwyn tentou se manter calma, tentou não começar a chorar e entrar naquele poço sem fundo. E, tão lentamente quanto podia, se aproximou aos poucos.

Ela se ajoelhou em frente a fêmea, que continuou da mesma forma, até que as pontas de seus dedos tocarem levemente o ombro dela. O corpo estremeceu e Gwyn a viu fechar os olhos com mais força.

— Eu... — a sacerdotisa começou e parou. Ela queria dizer que tinha acabado, que tinha passado, mas sabia que não tinha.

A feérica ergueu o rosto, tinha um hematoma na lateral, o lábio estava cortado e lágrimas caiam sobre a pele. Gwyn conseguiu ver, nos olhos verdes como grama, o momento em que o estupor deixou o corpo dela e a dor veio, o medo, o luto, o desespero. Tudo isso junto rasgando a alma.

A sacerdotisa não conseguiu se mover no instante em que os lábios machucados da fêmea se abriram, mas em vez de palavras, foi um grito meio esganiçado, meio entrecortado que saiu.

O som podia muito bem ter partido seus ossos. Era de rasgar a alma. Era o som de uma alma se partindo, que traduzia o momento exato em que o esturpo passava e só restava dor, infinita e cortante.

Ela sabia, conhecia a sensação.

Não se lembrava bem porque tudo depois de ver e sentir sua irmã morrer eram mais borrões que memórias, mas sabia qual era a sensação, lembrava de se sentir despedaçada, suja, perdida. Lembrava de gritar até que não pudesse mais sozinha no quarto na biblioteca.

A ruiva piscou com força, afastando o pensamento e tentando dizer ao próprio corpo que tinha que se mexer. No entanto, antes que pudesse dizer ou fazer algo, a feérica se arrastou pelo chão, aos prantos, até onde outro corpo estava.

Gwyn não o havia notado, estava do outro lado da pequena cabana, meio de lado como se para proteger algo.

— Mãe! — o choro aumentou quando chegou até ela, quando viu que não tinha mais vida.

Mesmo assim, a fêmea colocou as mãos sobre o ferimento na barriga, como se fosse conseguir parar o sangue. Não... Gwyn notou, ela estava tentando tirar o que quer que fosse dos braços que não tinham mais força.

A ruiva não conseguiu fazer algo ao ouvir o soluço, o grito de dor pura enquanto, com toda a força que podia retirar o corpo de uma menininha dos braços da própria mãe.

Era uma criança, só uma menina que sequer deveria ter mais de dez anos. Era um corpo sem vida, pálido, frio, com olhos cor de grama abertos e desfocados, e lábios sem cor entreabertos. Com um vestido meio rasgado e sujo de sangue. Morta. Morta por...

Gwyn sentiu que iria vomitar outra vez, só que estava paralisada demais para isso. E ela só se moveu quando ouviu a fêmea continuar gritando.

— Laira! — sacudiu o pequeno corpo, como se aquilo o pudesse trazer de volta à vida — Laira! — outro grito irrompeu, ao mesmo tempo que balançava a cabeça, fazendo que não.

𝐶𝑜𝑟𝑡𝑒 𝑑𝑒 𝑆𝑜𝑚𝑏𝑟𝑎𝑠 𝑀𝑒𝑙𝑜́𝑑𝑖𝑐𝑎𝑠Onde histórias criam vida. Descubra agora