1§ A fuga

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- MULHER -


O comboio estava atrasado mais uma vez!

O frio na estação era intenso, acompanhado por uma chuva miudinha que ia assolando o cais de forma irregular. 

Quando se tem uma criança de cinco anos, ao lado, ainda ensonada e rabugenta, todos esses pormenores ganham enorme relevância. 

Claro que o facto de serem pouco mais do que seis da manhã, também não ajudava em nada. 

O chefe da estação circulava ao longo do cais, olhando passivamente o relógio no pulso. Ao passar perto delas, deu o sorriso de cortesia, como que se desculpando por todos os transtornos a que uma mãe e uma criança estavam a ser sujeitas.

Se ele tão somente imaginasse que ela nem sequer era a mãe da criança! 

Se ele pudesse adivinhar os abusos que a inocente criança tinha sofrido por parte dos progenitores ao longo daqueles anos! 

Sim, tratava-se duma fuga, talvez até mesmo um rapto! Uma tentativa desesperada duma vizinha para salvar a vida de uma pobre menina que ainda não tinha tido o direito à inocência da infância.


Finalmente, ouviu-se o chiar das linhas ao longe. O comboio aproximava-se! A libertação estava próxima! 

A todos a quem devia uma explicação, tinha dito que ia de férias duas semanas, sem destino certo. Era o suficiente para despistar suspeitas e ganhar assim algum tempo. 

Precisava de definir como seria a sua vida com uma criança que a partir de agora seria a sua filha.

Apesar das muitas pessoas no cais, deram-lhe prioridade a ela e à menina no embarque. 

Ao entrarem no comboio, a criança desde logo se apressou a tomar o assento mais perto da janela. 

Era algo novo para ela, que lhe afugentara assim a sonolência. Explorava com os seus olhos curiosos todo o entorno, com o ímpeto de descoberta tão próprio duma criança. 

Enquanto ela acomodava as malas, a menina, que se pusera de pé à janela, exclamou:

— Mamã!

O comboio partiu. A menina permaneceu à janela por mais uns instantes, olhando para trás, à medida que a estação ficava cada vez mais longínqua. 

Ela não se atrevera a assomar-se à janela! A ansiedade e o terror de ver todos os seus planos frustrados tinham-na imobilizado. 

A criança aninhou-se no seu lugar sossegada, mas sem esboçar qualquer palavra ou protesto. 

Assentiu a caricia suave, no seu cabelo, por parte dela. Afinal ela era a senhora que sempre lhe preparava lanches deliciosos, quando voltava da escola e não estava ninguém em casa. 

Era um segredo delas as duas, os pais não sabiam da existência desta "tia". 

 A menina confessara-lhe o que os adultos balbuciavam, depois de muita insistência, para saber pormenores sobre essa misteriosa "tia".

— Deve ser uma amiga imaginária!

As duas moravam em quarteirões vizinhos, numa zona suburbana da cidade. Não raro, a elite citadina, apelidava subtilmente aquela zona de "bairro multicultural". 

Ela conhecera a menina numa pastelaria do bairro, onde a criança ficava horas, após voltar da escola, à espera que algum dos pais a fosse buscar. 

Durante semanas, presenciara a forma rude com que pegavam na criança, após o dia de trabalho, e a levavam para casa. Lidavam com ela como que se de um empecilho se tratasse. 

Os gestos bruscos, ou algumas palavras mais irritadas, faziam-lhe disparar o coração. Não conseguia evitar de ficar chocada. 

À medida que os episódios se repetiam, ela sentira-se impelida a segui-los à distância, cada vez por mais um pouco. 

No seu subconsciente, tentava se convencer de que assim poderia proteger a menina de alguma coisa. 

E assim, dia após dia, foi cada vez colecionando um pouco mais da vida da pequena criança. 

Descobriu onde morava, avistou diferentes caras de familiares e até apercebeu-se de algumas rotinas.

Certo final de tarde, o dono da pastelaria acercou-se do pai da criança, quando este a foi buscar. 

Deu para perceber a tensão na conversa e, com a pastelaria já praticamente vazia, era percetível a temática da conversa. 

A pastelaria não aceitaria mais que a criança permanecesse ali, por horas a fio, sem a supervisão dos pais. 

Era um risco para eles caso algo acontecesse e não lhes competia assumir tamanha responsabilidade. 

Aquele foi o momento em que ela decidiu que tinha de estabelecer contacto com a criança. Era o futuro de uma menina que estava em jogo.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz da menina, que a olhava com um semblante triste.

— Porque a mamã não pode vir connosco? — perguntou.

Agora não haviam dúvidas, era a mãe da criança quem tinha estado na estação. 

O comboio travou bruscamente! Estavam a chegar à primeira paragem. Olhou pelo vidro e viu os seus maiores temores materializarem-se. 

No cais da estação estavam pelo menos uns quatro agentes da polícia. A menina, assustada com a crueza e o impacto do freio do comboio, abraçou-se a ela. 

O futuro de ambas decidia-se agora.

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Boa leitura e obrigado.

A Filha Roubada - Completo - ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora