Ruivo III

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PICANTE

Existem verdades capazes de fazer o mundo girar ao contrário só pelo simples fato de acontecerem em nossas vidas e nada podermos fazer a respeito para contê-las. Como alguns venenos, curam ou matam dependendo da forma a qual são reveladas. Daniel já não tinha tanta certeza em qual lado se encontrava, uma vez que a ferida trouxesse um alívio emocional quando feita, doía intensamente momentos depois.

Vanessa não se espantava com aquilo. Provou do gosto amargo do desrespeito quando o ex descobriu sobre sua transsexualidade. Ver o feitiço virar contra o feiticeiro, ao mesmo tempo em que lhe trazia a sensação de colher o que plantou, criava um mix de tristeza com angústia em vê-lo assim. Faria um juramento frente a professores doutores dali há alguns dias, sob condição explícita de sempre defender e salvar pessoas a beira de um colapso emocional. Seria hipocrisia começar sua carreira num lamaçal por questões menores.

Com consciência disso, tratou de ajudá-lo sentando-o no sofá e indo em direção a cozinha, onde ficou por cerca de dez minutos retornando com duas xícaras em cada mão com um saquinho de chá dentro. Entregou um ao garoto e deixou que desse alguns goles para ver se o ritmo frenético no qual chegou amenizava. Tomou assento a seu lado de boca calada. Deu-lhe a oportunidade de pensar com a cabeça um pouco mais fria, analisar bem antes da conversa tomar rumo.

Poucos minutos ficaram apenas assim, com o silêncio pairando no ar. Dan reconhecia que começar a conversa estando uma pilha não levaria a lugar nenhum, Mesmo porque outras coisas passaram a lhe tirar o sossego, como por exemplo estar ali sem nem ter dado satisfações a Rauf ou Vitória, pais de Vanessa. O que lhe consolava era o fato de, caso estivessem em casa, já teriam aparecido. Nem sabia como proceder encarando-os depois dos últimos feitos, mas espantou aqueles pensamentos por hora. Problemas vertiam da parede como água em sua vida, sem necessidade de criar mais outro hipotético por puro masoquismo.

— Camomila? — perguntou, referindo-se ao sabor do líquido. Queria mais puxar assunto para quebrar aquela tensão.

— Tiro e queda pra gente muito ansiosa ou estressada — respondeu, sorrindo — Vai te fazer bem.

— Valeu.

Continuou tomando quieto até as batidas aceleradas acalmarem para, a partir daí, começar a despir-se de seus anseios e abrir o coração. Não tinha uma sombra de dúvida que a loira conseguiria lhe dar um norte a seguir.

— Às vezes eu sinto que o mundo quer me castigar pelo que eu fiz — desabafou, de cabeça baixa — Não é possível que isso seja real.

— O que tu acha que tá pagando?

— Ah, qual é. Tu sabe bem — sondou — Me apeguei na tua opção sexual e meti tudo a perder.

— Orientação, Dan, não opção. Se fosse opção, escolheríamos ser hétero. Muito mais fácil pra vivermos na hipocrisia da sociedade, né? — corrigia — Além do mais, já conversamos sobre isso. Tudo bem, tu não ter engolido eu ser transsexual atrapalhou e muito, mas tu sabe que isso representou 50% do problema. Os outros foram traições, mentiras, desavenças aqui e ali...

— Exatamente. Por isso tô pagando com a língua agora. Bem feito pra mim...

Naquele momento, Vanessa pôde encarar um lado do ex namorado o qual desconhecia até então. Ao longo dos dois anos e meio de namoro, viu sempre uma face mais desprendida de anseios, certo de tudo o que almeja. Vê-lo naquele estado de súplica por uma resposta que afagasse as dores pelas quais passava doía fundo, no entanto, relutou em deixar-se levar. Queria dar ao menor a chance de se reerguer que ela mesma teve anos antes dos pais.

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