Roxo VII

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DRAMÁTICO

Viver sozinho é sempre um desafio, uma vez que, dadas as circunstâncias, nada se concretiza, a não ser que parta da gente a motivação para realizá-las. Quando optou por sair de Porto Alegre, deixando lá a certa mordomia de ter tudo em mãos a hora que bem entendia, se via em uma situação nova precisando administrar um apartamento sozinho, dando conta das tarefas todas a fim de cumprir sua parte no combinado. Afinal de contas, Nita, sua mãe, fez caras e bocas nada agradáveis sobre deixar seu bebê andar com as próprias pernas. Não queria dar o gosto de vê-la vitoriosa enquanto criticava o pai por ter dado corda.

A melhor parte daquilo tudo realmente se dava na troca de ares. Pelotas tinha o dom de trazer à tona sua melhor versão, sem que precisasse se sacrificar muito para manter pensamentos incômodos a quilômetros de distância. A pior era controlar cada ação do dia para que a reação fosse de acordo com o esperado. O maior exemplo disso era a limpeza do apartamento, a seu cargo por estar usufruindo do espaço. Mandava bem tirando o pó de seus livros, ajeitando sua cama, varrendo e limpando o chão... do seu quarto, Fazer essas tarefas para um apartamento inteiro sem ajuda conseguia ser um desafio exaustivo. Não havia um único dia em que nenhum cômodo da casa beijasse as cerdas verdes de sua vassoura.

Já mais para o fim da tarde, com o sol despedindo-se da cidade, pensou que era hora do lanche. Achava merecido, afinal de contas mais uma tarde havia dedicado a tirar o mais ínfimo grão de pó escondido por de trás dos móveis do velho imóvel da família Dos Anjos. Uma torrada com ovos lhe faria bem. Primeiro fritou os ovos e, já terminados, deixou o pão na torradeira e correu para limpar a cristaleira vazia, pensando ser jogo rápido. O problema foi que, ao abrir a porta para passar o pano úmido, levantou mais pó do que o deserto, culminando na demanda de mais tempo do que previsto inicialmente. O resultado não foi diferente: um cheiro de queimado invadiu a casa menos de três minutos depois, fazendo-o correr até a cozinha só para flagrar os dois pães transformados em carvão. Expurgou o mundo todo por sua atitude mal calculada, ainda que nada adiantasse na prática. O estrago estava feito.

Comprovado isso, tirou as torradas de dentro da torradeira, colocou-as fora e pôs-se a fazer outras. Estava no meio do processo quando ouviu batidas na porta. Ficou sem entender, uma vez que Micael havia retornado e, dos demais primos, ele era o único tido como disponível para função, suspeitou do gesto. Foi a passos de formiga até a porta mesmo com o visitante ansioso para entrar, repetindo as batidas de minuto em minuto. Ao notar o rosto inchado com olhos lacrimejantes através do olho mágico, assustou-se. Abriu o mais depressa que pôde vendo o rapaz na porta sem chão, e, assim que o fez, sentiu seu abraço apertado como há muito não via. Ian chegara de surpresa.

Tentou arrancar dele algumas palavras ali mesmo, o que se mostrou sem maiores efeitos. Seu primo mal conseguia abrir a boca sem deixar que o choro tomasse conta. Sua expressão era de um civil em meio a guerra, vendo todos a sua volta sofrer sem nada que pudesse fazer para impedir. Andreas notava o desamparo dele e se preocupou em ajudá-lo com a mochila e sentar no sofá, além de correr até a cozinha para pegar um copo com água com açúcar. Suas mãos tremiam tanto quanto as dele, já que em raras ocasiões havia-o visto com tamanho descontrole. Ao chegar à sala, os olhos de Ian ainda tiravam de dentro dele as dores as quais ainda não tinha sequer sombra de saber a origem. Entregou-lhe o copo e sentou a seu lado, aguardando quando iria se recompôr. Enquanto isso, não dizia uma só palavra, na busca de respeitar seu sentimento.

Depois do tempo passar sem muita pressa, com o copo já esvaziado, Ian conseguiu acalmar seus nervos tão sem rumo ou vontade de lutar. Pela primeira vez em anos, o prumo havia sido retirado de forma tão horrenda e absurda ante os caprichos da vida. Por mais esforços que fizessem de, em meio às ruínas recém feitas, encontrar uma explicação capaz de justificar a partida de um Diógenes tão moço e cheio de esperanças no anseio de serem alcançadas, uma névoa cinza parecia ter tomado conta de sua visão. Nada ficava claro ou fazia sentido. Faltava razão de existir ou acontecer e, mesmo que a tivesse, tinha dúvidas se a aceitaria.

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