Considerando-se ignorado depois de ter batido insistentemente na porta e clamado o nome de Helena por uma porção de vezes, César decide ir embora. Ela havia sido clara em seus recados: tanto na fuga, quanto no anel deixado para trás, mas foi especialmente cristalina nas verbalizações de horas atrás ao mandá-lo embora. Acabou, César... É hora de ir mesmo.Ele dá as costas para a porta e se submete às escadas para voltar ao patamar inferior e pegar seu carro para partir - para onde, ele não sabe. Acho que mesmo depois da briga fervorosa que tiveram, das palavras ofensivas que trocaram, de tantas acusações, tanto choro, tanta dor, tanta ira... Mesmo assim ele não esperava por aquilo: bater novamente na porta dela e Helena não atendê-lo. Tudo bem que é tarde, é realmente muito tarde, imagina... Se na primeira vez que ele deixou a casa já passava da uma hora da manhã, imagina que horas são agora? Helena bem que poderia estar dormindo, mas ele brada muito alto. A propriedade é de campo, não tem problema gritar porque são aí muitos metros de gramado e mata até achar a casa vizinha. Então ele bradou, bateu na porta com força repetidas vezes, chamou pelo nome dela e... Nada. Claro que ele pensa que, na verdade, ela o está ignorando e que talvez o fim que ela propôs ao pedir para que ele se retirasse não tenha sido da boca pra fora. Por isso, ele entende que precisa partir. Mesmo sendo de madrugada, mesmo que esteja chovendo, ele precisa ir, precisa honrar a gota de orgulho que sobrou.
Sendo assim, César já desceu dois ou três degraus quando ouve um barulho nas suas costas, um barulho curioso. Tanto eu quanto você, leitora, sabemos o que é: óbvio, Helena. A demora toda foi porque, devido a exaustão da noite sem dormir, das muitas taças de vinho que tomou e do peso da conversa que tiveram há mais de uma hora a trás, ela havia pegado no sono em um daqueles cochilos que acontecem em situações em que a cabeça pensa tanto que parece que nunca mais vai conseguir desligar, mas o corpo se desliga quase que em um mecanismo de defesa, sabe? É o que aconteceu ali. Helena só se percebeu adormecer quando ouviu o seu nome sendo chamado e, ao contrário do que ele está supondo, ela não o ignora: desperta de pronto para ver o que ele quer, já que já sabe que se trata de César.
O médico ouve o barulho já embaixo dos pingos grossos da chuva repentina. Ele não vira de imediato porque não sabe se é mesmo o barulho da porta ou se seu ouvido está sendo enganado pelos trovões ou ainda se aquilo é uma projeção do que o seu inconsciente gostaria. No fundo, bem no fundo, César queria que ela abrisse a porta, queria fazer o choro dela parar, as dúvidas cessarem, calar tudo com um beijo, amornar o coração contrito de Helena e deixar os problemas para amanhã; não obstante, recolhendo os cacos deixados no chão ou imersa no seu banho, Helena ficava com aquela ponta insistente e teimosa de esperança de que ele ignoraria o que ela disse por último e voltaria para amá-la, ainda que pela última vez. De certa forma, é o que está acontecendo, não é? Os desejos de ambos estão se encaminhando, não sabemos com qual desfecho, mas Helena de fato está abrindo a porta e César voltou, como ela fantasiou em meio a choros.
Há um barulho mais forte de trinco e a certeza de que era Helena, era ela atendendo ao seu chamado, vem. Ele, que já estava parado, que havia cessado os passos para partir, vira parte de seu corpo para olhar para trás. Cerra os olhos para livrá-los das gotas de chuva e ajudar a compor a imagem: era ela, claro que era ela. Helena abre com parcimônia cada uma das fechaduras, mas olha para ele a todo momento, a cada agachar. A porta é rústica, dessas que o ferrolho fica na parte inferior, então há uma sequência demorada de ações: ela abaixa, puxa o trinco, se ergue, abre a primeira parte da porta. Repete, abre a outra. César assiste sem sair do lugar e vai ficando ensopado sob os pingos, mas quem é que liga? Naquela madrugada fria e de tanta dor, o que menos incomoda é estar molhado, porque tudo o que acontece ali, dentro dele, parece sufocar. Então os pingos caem, a chuva molha e as mãos dela executam tudo em automático, porque eles só se preocupam em se olhar, como se não soubessem o que fazer.
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Lacunas e Desfechos.
RomanceEsta estória é inspirada na novela e se desdobra em vários capítulos, com a intenção de complementar o enredo deste casal tão querido - sem que haja, no entanto, modificações na trama original. Sabe aquilo que você sempre quis ver na novela, a ce...