101. [Lacunas] Parte 86

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A briga foi realmente feia, não ficou pedra sobre pedra. Naquela madrugada de sábado, desfilaram pelos cômodos amplos da casa de Itatiaia todos os tipos de emoções em confusão, o amor duelando com a raiva, que impulsionava o desejo. A vontade de ficar no abraço um do outro, de se amarem da maneira mais saudosa e instintiva possível em guerra com o orgulho, com a razão, com a necessidade de provar um ponto, de ferir porque também já fora ferido - os dois. Por isso, não é segredo que ambos saíram dessa discussão destruídos, assim como a relação: Helena fez questão de frisar que foi para Itatiaia para ficar sozinha. Que não queria mais. Que não aguentava mais. E que não haveria mais casamento algum.

A sensação que eu tenho é a de que naquele momento, tudo ruiu de fato. César passou dois dias alternando entre raiva e desconfianças, até vê-la fragilizada como viu e ficar, como sempre, fragilizado. Nunca houve pose que ele conseguisse sustentar diante daqueles olhos chorosos e o nariz, vermelho. Então, se ele havia viajado sob mil desconfianças e teorias, a partir do momento em que a viu se desmanchar sob seus olhos nas lágrimas mais doloridas e nos discursos que pareciam rasgar o peito, ele naturalmente se desarmou e tentou, leitora, como você há de se lembrar, atenuar a noite, prover algum tipo de suavização daquilo que Helena vinha dizendo e acusando. Tanto é, que por várias vezes eu achei que os dois cederiam, que acalmariam os ânimos - bom, pelo menos, se os pedidos dele não adiantassem para ela parar, eu realmente achei que aquele beijo serviria... Mas não serviu, como você bem sabe.

Ego de mulher ferida é sempre mina com potencial para aflorar uma variedade de sentimentos. Nesse sentido, eu acho que houve, sim, algo positivo na noite. Como assim?, você deve estar se perguntando. E me adianto na explicação: eles têm história demais - e com nuances que ainda não sabemos e talvez nem cheguemos a conhecer, mas é história demais. O que a gente sabe, de fato? Que Helena e César têm um degrau amplo de diferença de idade entre os dois, algo para a casa dos dez anos. Que se conheceram quando ele estava na faculdade e ela, era uma menina. Se apaixonaram perdidamente e, a partir daí, um vazio de informações, mas o fato é que: se apaixonaram e não tiveram, em nenhum dos oitos anos em que se relacionaram, calma. Ela diz que acompanhou o casamento dele por um recorte de jornal, então... Eles se relacionaram quando eram, ambos, solteiros. Ele diz por inúmeras vezes que deixou a mulher e filho por ela em duas ocasiões, logo, voltaram a se relacionar mesmo após o casamento de César. Ele diz que foi fiel a ela, ela não refuta, mas ao mesmo tempo, afirma que César tem a alma infiel e traiu todas as mulheres que passaram pelo caminho dele, inclusive ela. Percebe como a coisa se desenha? Temos provavelmente um relacionamento dividido pelo menos em três etapas onde em uma delas, houve espaço para infidelidade e nas outras, provavelmente quando tudo ficou mais sério, mais formal, a fidelidade de César entrou em jogo ao mesmo tempo em que a de Helena começava a vir à tona.

Se você aí, lendo e montando, quem sabe pela primeira vez, essa linha temporal, deve estar com algumas dúvidas, imagina os dois, que viveram a história? Imagina o tanto de questionamento sufocado, medo velado e dúvida contida que eles não possuem ainda? Eu penso que até hoje deve ser, de alguma maneira, dúvida para César o porquê de algumas atitudes dela no passado. Imagino também que Helena deve ter tido suas razões e também traz consigo uma porção de coisas não ditas e é nesse sentido que eu afirmei que, para mim, apesar de extremamente dura, a briga foi necessária. Honestidade emocional consigo e com o outro, sabe? Acho que Helena, pela primeira vez em muitos meses, se permitiu não pisar em ovos com César e simplesmente ser ela em seu estrado bruto de mágoa, raiva e fragilidade.

Talvez isso esteja no tempo certo, inclusive. Porque houve a conquista, houve o flerte, houve todo um esforço no sentido de trazê-lo de volta para ela, fazê-lo abrir a guarda, se desarmar dos medos e deixar de se contrapor àquilo que não dá para negar e nem se pode escolher: o amor e pertencimento de uma vida inteira de um, ao outro. Nesse sentido, esses dois meses solidificaram bem tanto para um, quanto para o outro que, sim, eles se amam, sim, eles se pertencem - nada disso era novidade, na verdade... Mas serviu para que os dois tivessem a mais plena certeza de que não conseguem passar impunes à existência do outro. Quando tudo era ausência e saudade, ainda assim cada qual tinha seu efeito arrasador dentro do outro, então imagina agora, estando perto? Imagina agora, que os olhares se procuravam, se devoravam e decifravam mesmo quando dentro de algum deles, havia resistência? Se era difícil seguir tendo lembranças de outrora das vezes em que se amaram, como ser inerte agora, se o gosto de um ainda está impregnado no poro do outro? Se eles se refestelaram novamente na delícia da volúpia que possuem e se descobriram ainda melhor do que sempre haviam sido?

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