99. [Lacunas] Parte B

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Sexta-feira, 03 de Setembro de 2003.

O dia dos dois transcorre quase da mesma forma que o anterior - ao menos na angústia. Hoje, apesar de deprimida, Helena parece estar de alguma maneira decidida. Oscila, no entanto:  as vezes ela tem vontade de ligar, de ouvir a voz, de perguntar, passar a história a limpo, esbravejar... Mas segue com o pensamento de ontem e volta a ponderar que as vezes não vale mesmo a pena, que talvez tenha sido um erro insistir de novo em uma história de amor maculada por tanta dor, que já não havia dado certo várias e várias vezes.

César, por sua vez, segue com seu humor peculiar, mas a correria é tanta que passa o dia inteiro na clínica e acaba nem indo almoçar devido às intercorrências. Ele acha bom, de certa forma, porque tem menos tempo para pensar em Helena e na relação dos dois, como aconteceu ontem, lembra? A todo momento ele verificava o celular para ver se havia algum sinal de Helena e sabemos bem que não houve. Então, é bom estar ocupado, ele passa vários e vários momentos pensando em qualquer outra coisa além de Helena, do seu paradeiro repentino. Mas como é que foge dessa pauta, se Helena é presença para a família toda? Não é como se ele pudesse seguir como seguiria no caso de um término com uma namorada qualquer: Helena está infiltrada no amor e cotidiano dos filhos, é referência constante na boca dos jovens. Antes de saber que Helena era a sua Helena, ele já ouvia sobre ela, a filha falava sobre a professora Helena na mesa. Falou por um ano inteiro! Filho e filha rendidos por ela, agora com um convívio escolar e envolvimento familiar também: sempre vai surgir um comentário, como ontem, quando Rodrigo a mencionou na hora do almoço - para a ira do pai.

É hora do jantar, noite de sexta-feira, todos a mesa. Marcinha age o tempo inteiro sem graça porque está nessa posição de ver o pai mal, sem entender os sumiços da noiva e ela não pode falar nada porque prometeu para Helena e fora orientada pela avó. Dona Matilde, sempre observadora, verbalizou que o filho não ouviria, nem compreenderia nada se fosse dito pela boca que qualquer outra pessoa que não fosse Helena. Perspicaz, não é? Eu imagino mesmo que se Marcinha dito qualquer coisa como 'ah, pai, acho que ela ficou bolada porque viu uma mulher no seu consultório', César teria aquela reação padrão de desqualificar as razões de Helena antes mesmo que ela pudesse confrontá-lo. É que provavelmente não adiantaria, já que Helena não se intimida e não há quem a acue, mas provavelmente ele agiria dessa forma ou de maneira similar, não daria boa, relativizaria qualquer incômodo sentido por ela... Então a senhora acha que, seja lá o que for, César precisa ouvir dela, de Helena, direto da fonte e sem ruídos pelo meio do caminho. Inclusive é por isso que ela segue observadora desde ontem e, mesmo vendo-o triste ou muito estressado, preferiu fingir que não sabe de nada.

Mas voltemos ao jantar: Rodrigo, depois das patadas recebidas ontem, jamais se arriscaria em pronunciar no nome de Helena de novo, até porque a cara do pai à mesa é evidentemente de quem está muito, muito irritado, muito estressado. Aí sim é que ninguém fala sobre nada porque é uma daquelas situações em que qualquer assunto, qualquer pauta o faria dar más respostas ou se irritar ainda mais. Mas, meu deus! Ele quer saber. César quer saber. Ele precisa saber. E, pelo visto, a única forma dele saber sobre Helena sem dar o braço a torcer a procurando de novo depois das muitas vezes que ela o ignorou, é especulando com os filhos.

César: Vocês... Vocês estiveram com a Helena hoje? Ela está bem?

Rodrigo olha pra Marcinha meio que de canto de olho e os dois fitam o prato em silêncio. Eles se omitem da resposta e aquilo gera uma impaciência no pai: César solta os talheres e olha para os dois de maneira séria, acompanha aquela troca de olhares cúmplice, entende que há mesmo algo que está sendo ocultado e já vai logo questionando.

César: O que foi?

Rodrigo: Fala, Marcinha. Ele perguntou, acho justo que ele saiba. - O jovem instiga.

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