108. [Lacunas] Parte 93

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Voltemos a cena: César se levantou cedo naquela manhã de domingo; lembrou-se de papeis do trabalho, buscou a pasta no carro, analisou linhas e linhas de um documento em meio a uma xícara de café e, com isso, perdeu o sono. Ainda estava escuro quando tudo isso acontecia, devia ser por volta das cinco e pouquinho da manhã... E, como eu e você sabemos, nosso casal havia se deitado também de madrugada após aquela noite de vinho, pizza, lareira e muita conversa sobre todos os pormenores da história dos dois. Passamos a conhecer vários porquês que não sabíamos, não é? E você há de se lembrar que, tendo perdido o sono, ele ficou contemplando a paisagem, teve alguns insights, lembrou do anel, pegou o anel, olhou mais e mais a paisagem, outro insight, deixou novamente o interior da casa e, quando voltou, já voltou indo direto ao quarto para encontrar-se com ela.

Helena dormia, ele a fez despertar com beijos, chamegos, roçar da barba, cochicho rouco e um clima tão gostoso que levou a nossa protagonista a imaginar que ele a estava acordando por algum outro motivo - do qual, inclusive, ela era grande entusiasta. Por isso, ficou surpresa quando ele recuou do beijo para se levantar. Ela tentou brecá-lo, puxou César pela gola do roupão cobrando com o olhar por explicações: como assim você vai me deixar aqui? Como assim você não quer? E achando graça, ele assegurou que a compensaria e pediu para que ela o acompanhasse. Continuemos, portanto...

César: Agora você vem comigo.

Ele enfatiza. O jeito é enigmático, misterioso com um certo humor, uma certa graça. Nada que Helena não conheça, não é? Quantas e quantas vezes ele armou algo e usava do mesmo tom, o mesmo jeito gostoso para atrai-la para seus planos? Ela reconhece e, não vou negar: gosta. Sentiu falta. Tudo bem que é cedo, é muito cedo... Ela havia sentido um ventinho atípico bater contra a sua pele quando ele estava sobre ela dando beijos e, apesar de desconfiar, não procurou saber a origem; agora, ela de fato olha e vê: porta escancarada. Tem plano, sim, conclui. E ok, é cedo, é muito cedo... Pelo jeito alaranjado do céu mesclando com manchas escuras da madrugada, dá para presumir que é algo em torno das 6h00. De um domingo. Frio. Mas até disso, desse... Desse 'incômodo' absolutamente mal - ou bem? - intencionado na hora de amar, ela sentiu falta.

E é por isso que, ainda deitada ela suspira de maneira preguiçosa, fecha os olhos e procura coragem para se levantar. Ele espera pacientemente e se delicia assistindo o festival de manhas, a forma sensual e bonita que ela tem de se mover devagar mesmo em uma ocasião assim, tão cotidiana. Não há as montagens e grandes arranjos de um encontro, sabe? É César de roupão e cueca, óculos e barba por fazer e Helena de calcinha e a blusa da noite anterior toda amarrotada, sem maquiagem, sem... Sem máscaras. Os dois, com os cabelos um pouco bagunçados - os dela, principalmente... O arredor dos olhos, com um pequeno volume e a voz, rouca. Sinais de noite muito bem dormida e traços de uma intimidade que só se descortina na vida a dois que eles sempre adoraram curtir.

Entre espreguiços e múrmuros, ela se senta senta sobre a cama. Ele assiste com o mesmo sorriso e oferta a outra mão a ela; ela aceita. As duas mãos devidamente encaixadas e César puxa Helena, dando um impulso para que ela se coloque de pé. Caminham juntos e aqui é bem legal ver um padrão: as mãos seguem dadas; uma mão de Helena está totalmente encaixada na mão de César. Rotineiro, certo? Cotidiano. É o normal, Lívia, você pode pensar... E sim, de fato. Mas é simbólico também, porque César vai na frente e Helena vai atrás, os dois de mãos dadas. Estão só andando pelo quarto, percorrendo um caminho muito simples, de destino certo - a sacada - e poucos metros. Mas... Quanto tempo faz que Helena não pode se deixar ser conduzida? Há quanto tempo ela tem que ser sozinha? Sabemos bem que ela passa longe de ser alguém que se submete, que é meramente ilustrativa em qualquer relação que seja... Mas sabemos também que ela sentia falta de ter exatamente o que ela tem hoje: a parceria. E entre ela e César, da mesmíssima forma que ele abre mão do orgulho, do ego e da empáfia para ser meramente um menino, um súdito nos braços dela, Helena também consegue dispor de toda a segurança que tem para ser frágil e se deixar ser cuidada. Por isso, é bonito de ver o zelo: ele a conduz, se coloca à frente. É como se ele deixasse bem claro que, seja lá o que for que eles venham a enfrentar, enfrentarão de mãos dadas e que ele sempre se colocará a frente para que as dores batam nele primeiro, antes de tocarem nela. E isso é muito a cara dele.

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