68. [Lacunas] Parte 53

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O frio dá o tom à noite paulista. Por isso, Bárbara veste um casaco longo preto por cima de sua roupa. Dessa vez, os cabelos estão presos em um coque despojado e o único ponto de cor em toda aquela composição negra é a sempre chamativa boca vermelha.

César a avista, mas ela não o vê por estar de costas. Por alguns momentos, ele fica parado e só contempla a fumaça do cigarro de Bárbara se dissipar lentamente pela brisa densa e gelada de São Paulo. Ela parece embebida em seus pensamentos, com o corpo recostado no parapeito quando, não sei, parece que por instinto, talvez, ela sente o corpo de César por atrás do seu.

Bárbara: Mon petit chat.

César: Oi, doutora Bárbara.

Bárbara: Você sabe que a gente só vai ter essa conversa porque eu gosto muito de você e porque nós somos, antes de mais nada, amigos, não sabe?

César: Eu sei. Me desculpe pela forma como eu saí ontem, eu deveria ter te explicado.

É só neste momento que ela vira para olhá-lo. São segundos breves que se arrastam dando ares de imensidão nessa troca enigmática de olhares. É como se Bárbara o analisasse, parada, rolando o cigarro por entre os dedos. Parte dela, então, a retomada do diálogo.

Bárbara: Se eu não tivesse espelho em casa, eu desconfiaria que você fugiu por conta dos meus 50 e tantos anos, pois sei bem que você tem apetite pelas jovens. Mas como eu tenho e sei que isso aqui, com o tempo, só se valorizou, imagino que o problema não foi esse.

César: Hahaha. Com toda certeza, não. Você permanece linda e atraente, como sempre foi.

Bárbara: Eu estou brincando. Te percebi angustiado quando eu te beijei, você parecia duelar com alguma coisa.

César morde os lábios e assente com a cabeça.

César: Eu... Eu estou em compromisso com alguém.

Bárbara: HAHA. Quando é que você não está, César? Acho que eu nunca te vi solteiro. Mas isso nunca foi empecilho para a nossa... Nossa amizade, por assim dizer.

Ela estica o braço, enrosca o indicador no lábio dele e desce o dedo, segurando-o pelo queixo.

Bárbara: Assim como eu nunca tive vocação para o matrimônio, você, querido, sempre teve como ponto fraco a fidelidade.

Ele a ouve, sério. Bárbara pausa, traga mais uma vez e, em continuidade, emenda...

Bárbara: A não ser naquela ocasião em que você se apaixonou perdidamente por uma menininha novinha, hahaha. Aquela, sim, te virou a cabeça. Foi a única por quem eu te vi ser fiel, arranjar brigas por ciúmes, sofrer por amor, abandonar o casamento...

César não diz nada, ele só... Só olha para ela erguendo as sobrancelhas e passando a língua pelos lábios, meio que se divertindo e em tom quase confessional. Claro que essa deixa já é o suficiente para que ela ligue os pontos.

Bárbara: Ah, não. Não é possível, César! Não... Seu compromisso é com a menininha novinha? Hahaha. César, não pode ser, querido. De novo a Helena? O que é isso, karma?

Ele abre um sorriso largo. Parece que o peito até se alivia em, enfim, tirar esse peso, ser franco e ver o tom sempre gostoso e divertido de Bárbara permeando o diálogo deles, sem nenhum resquício de estranhamento pela noite anterior.

César: É a Helena. Nos reencontramos este ano.

Bárbara: Agora, sim, tudo fez sentido. Hahaha. Você deveria ter me dito desde o primeiro dia em que pisou em São Paulo, querido, que eu não teria se quer tocado o meu dedo em você. Eu sei bem que, sua vida, ela sempre foi assunto sagrado.

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