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—Eu posso tentar fazer o feitiço de ressurreição no seu lugar, acho que estou pronta — Melione pontuou durante uma de suas várias aulas pela manhã, os fios loiros escapando da faixa que usava para as aulas.

—Eu quero tanto saber quem foi que te contou sobre a minha recaída, apenas para socá-lo — Ruelle pensou enquanto limpava as mãos do pó violeta que cobriam sua pele negra retinta como uma fina luva.

Era um pequeno santuário perto da casa e dentro da redoma, com estantes e mais estantes de grimórios e bancadas apenas para suas práticas — como agora Mel tentava desenvolver sua telecinese.

—Sabe como Talon, ele queria ajudar da forma dele — Confessou, pingando algumas gotas de um líquido amarelo fluorescente num béquer quase cheio de líquido rosa cintilante — E de qualquer jeito, eu sou bem apta para fazer o feitiço, não é tão complicado, né?

—Reviver um ser místico é bem mais complexo que algumas pombas e esquilos — Ruelle a contrariou com tanta acidez que respirou fundo, percebendo a própria grosseria ao secar as mãos, aproximando-se da aprendiz — Sei que tem um potencial gigantesco como necromante, mas reviver temporariamente seres para que você controle é totalmente diferente de buscar as almas delas no plano espiritual: um lugar que eu realmente prefiro te manter afastada.

—É tão ruim quanto você costuma contar? — Questionou com uma carranca na pele corada repleta de sardas que pareciam pontos de luz pelos raios de sol que entravam pelas poucas frestas entre as rochas da sala — Digo... sei que estamos longe de ter o mesmo destino que os humanos, mas é realmente tão ruim assim?

—Pior que isso: é o lugar mais lindo que possa imaginar, mas como apenas nossas almas pairam por lá, nossa verdadeira face é imutável, te incita a ficar lá a cada segundo.

—Mas você já foi para lá tantas vezes — Melione considerou, lembrando de cada pessoa que Rue tinha feito questão de buscar dos mortos apenas para matar novamente — Não tem nem medo de ficar presa lá? — Ruelle estalou a língua, balançando a cabeça.

—Nada mais me impressiona hoje em dia — Confessou a Andraste, os olhos azul cristal olhando para o pequeno raio de sol que atingia o altar de pedra — E o cheiro de lá é bem enjoativo.

Melione não pôde evitar rir, pensando na sinceridade daquela fala. Observou a forma que ela se recostava, mordiscando o lábio da mesma forma que sempre fazia quando estava pensativa.

—O que eu faço agora? — Mel perguntou, apontando para o líquido que lentamente se tornava violeta, o cheiro metálico e amargo tomando todo o lugar.

—Tire do vidro e jogue fora — Pediu, sorrindo quando viu as mãos esguias de Melione agarrar o béquer para jogar na pia — Não, sem tocar no vidro. Telecinese, lembra?

—Isso não é denso demais para guiar? — Questionou, vendo Ruelle refletir por quase uma eternidade, os olhos estreitando-se para o líquido no pote.

—Não — Declarou finalmente, encarando Melione novamente — Agora vai logo — Apressou, gesticulando com as mãos. Não pôde evitar sorrir quando o rosto angelical de Melione se fechou numa carranca, com as mãos um pouco acima do recipiente. O líquido se agitou como um mar revolto dentro do béquer, chacoalhando o vidro.

Mel franzia o cenho ao se concentrar totalmente, forçando o líquido violeta para fora até se tornar uma nuvem neon em direção à pia, assim como Melione andava para continuar guiando. Até que ouviu Rue estalar a língua.

—Desembucha logo.

—O que? — Mel perdeu o foco assim que ouviu a voz de Ruelle, deixando o líquido ácido quase cair se não fosse por sua mestra, que arremessou sem esforço para a pia. — Foi mal, mas o que?

—Você está me olhando pelo canto do olho desde que entrou aqui, sei que quer falar algo que não está falando — Ruelle reclamou de braços cruzados — Desembucha.

—É que... não, acho melhor deixar quieto — Hesitou imediatamente, entrelaçando as mãos na frente do corpo, os olhos castanhos esverdeados observando os anéis dourados de flores. Mas Rue, assim como sempre, permaneceu inflexível, encarando-a pelo o que parecia ser uma eternidade desconfortável — Só não sei por que está revivendo ela.

—Kaz a ama, precisa ter outro motivo para isso? — A mulher revelou, os olhos com um brilho misterioso — Viveu quase 50 anos ao lado dela e eu tenho controle o suficiente da minha magia, se eu posso fazer isso, por que não fazer?

—Mas você ama ele durante... sei lá quanto tempo! — Melione reclamou, se arrependendo assim que falou, vendo-a respirar fundo e desviar o olhar. Andou depressa em direção à Rue — Você tem infinitas desculpas: É perigoso, a ressurreição de seres místicos desse porte é bem mais complexa de manter o controle, o feitiço precisa ser estudado, o corpo precisa ter anos de preparação... você tem controle, eu sei, mas quase não tem forças hoje em dia, tampouco para executar um feitiço assim. E acima de tudo: vai mesmo reviver a namorada do homem que você ama? Vai mesmo fazer isso com si mesma?

Melione ficava constrangida toda vez que Rue e Kaz estavam no mesmo lugar, podia sentir na pele cada troca de olhares, mas mesmo assim, eles se repeliam. E ela nunca tinha entendido o motivo em quase quinhentos anos de convivência com eles.

Mas ela via nos olhos cristalinos, aquela vislumbre de dor misteriosa que sempre perpassava os olhos dela quando o assunto era qualquer sentimento.

—Eu faço de tudo por vocês — Declarou, a voz tão tensa que Melione sentiu a melancolia cobrindo-a como um manto — Eu fiz, faço e farei tudo para que vocês estejam bem, como eu vou ficar depois, não me interessa nem um pouco, contanto que eu os veja sorrir.

—Tenho certeza que ele já estaria feliz de te ter ao lado dele, Rue. Poderia ser você — Retrucou, segurando as mãos da mestra que se esquivou sem sequer olhá-la.

A garota loira nunca entenderia o que Ruelle tinha dentro de si. Ela era uma bomba relógio, a primeira imortal com prazo de validade. Mas ela sequer se dava o trabalho de explicar para qualquer um como ela sentia o próprio poder consumindo suas entranhas, arranhando o próprio corpo numa tentativa de escapar. E sobre tudo aquilo, a gargalhada vitoriosa de sua mãe ecoava no fundo de sua mente. Mesmo morta, ela tinha alcançado o único objetivo que passou séculos tentando: tornar a vida de Ruelle miserável.

"Eu quero que lembre que você nunca vai ser uma pessoa, é só uma coisa, uma arma. Coisas não sentem nada e não merecem nada"

Em sua memória, a estranheza de ser "ela" ainda era tão recente quanto o café da manhã daquele sábado ensolarado. Ruelle sempre tinha sido "isso, aquilo" que a primeira vez que alguém a chamou de pessoa, ela se estranhou no próprio corpo.

—Não ache, nem por um segundo que isso pode me incluir, Melione, não ouse — Rue a repreendeu com a intensidade de um trovão, as palavras perfurando o coração da mulher que a via como uma mãe — E por favor, tome um banho! Ainda está fedendo ao terror da noite passada.

Melione sabia que era o momento de sair dali, e assim foi feito, fechando a porta perfeitamente esculpida em carvalho escuro, e Ruelle se selou ali pelo resto do dia, agarrada a um grimório qualquer. 

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora