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Satori era amedrontadora, sempre parecia esconder algo, sempre parecia frustrada com algo — e sem ela, tudo tinha piorado. No final da aula, Maven e Macaria saíam junto com Satori, mas apenas puderam observá-la se distanciar, o fone de ouvido repleto de adesivos sendo sua única lembrança da realidade conforme se distanciava com passos fortes e rápidos. Sem se importar em sequer dizer adeus.

—Sabe que ela sempre fica assim perto dos Julgamentos — O garoto lembrou para a amiga, mesmo que os dois se preocupassem apesar da quantidade de vezes que Sato se isolava de tudo.

—Não, eu... — Macaria balançou a cabeça, os olhos azuis estreitos como se realmente pudesse pressentir algo — Acho que tem algo de errado, sabe. Algo que não tá se encaixando.

—Deixa isso pra lá, Aria — Maven tentou reconfortar, passando o braço pelo pescoço da amiga, puxando-a para mais perto — Ela não tá mais estranha que o normal dela, não tem com o que se preocupar.

A verdade é que tinha sim, eles deveriam ter notado aquilo — se tivessem notado, talvez nada disso tivesse acontecido. Ela não conseguiu dormir, sempre confundindo a silhueta do amontoado de roupas no canto da cama amarrotada com uma pessoa, assustando-se com as luzes do campo de futebol do dormitório, achando ser os olhos prateados de Melione.

Era como se tivesse tomado o veneno da taça de vinho, como se o veneno fosse fazê-la enlouquecer e acabar com a própria vida. Mas ela nunca faria isso, nunca sequer se arriscaria a fazer isso.

Porque não era sobre ela, era sobre a Oposição, era sobre a resistência que passara a se importar tanto. Não importava o quanto Kinessa exigia dela nos treinos, prendendo-a durante mais uma tentativa enquanto o relógio já batia meia-noite.

A vida de Satori tinha parado de ser sobre viver para ela, era como se cuidasse de um copo que outras pessoas beberiam, nunca ela. Porque ela tinha resistido todos aqueles anos, mantida pela certeza de que era a única que conseguia inspirar as pessoas a seguir um caminho bom, um caminho justo.

Bastava sua cabeça rolar para que Leonor se coroasse a líder, que todos a seguissem como cachorros cegos pelo senso de justiça distorcido da mulher.

Eu sempre quis salvar pessoas... mas porque eu tenho que me perder para isso?

Qual era o custo? No final de toda essa merda, qual seria o maldito custo? Sato queria viver, mas como se ela parecia apenas respirar? Porque sua vida tinha parado de ser dela no momento em que Kinessa a recrutou.

Os pés de Satori a levaram para os dormitórios, mostrando o broche prateado de tigre antes de passar pelas catracas do prédio, notando quando o térreo de recreação foi substituído pelas paredes cinzentas e chão de mármore preto do subsolo — a área de treinamento.

Ela caminhou pelo corredor, virando à direita e ignorando todas as outras salas, trancando-se na Incórporo. A sala tinha paredes negras com uma projeção fraca de alguns vários pontos flutuando ao redor dela.

E foi no centro que ela conjurou tudo o que a tinha engasgado durante o dia.

A garota tirou o fone, colocando o celular e o fone em cima da mochila no banco de madeira. Percebeu os pelos arrepiados por pura eletricidade estática antes mesmo de se afastar.

Havia uma agonia que a perseguia como uma sombra, o fantasma da morte à espreita, esperando o primeiro vacilo para puxá-la de volta para sua poça de martírio e terror.

Os olhos pareciam com os de Ezekiel, mas de alguma forma eles eram mais sombrios, mais pálidos e foi a primeira coisa que Satori tinha visto no meio da mata.

Satori bateu uma única palma, e o ar zuniu com a mudança repentina de voltagem.

O cheiro da morte era amargo como a saliva grossa assim que acorda, azedo e forte como peixes apodrecendo ao sol escaldante. Satori não queria morrer, quis chorar e explicar.

Outra palma ecoou, a mão esquerda deitando até que a ponta dos dedos estivesse no centro da palma direita. Um fio dourado seguiu os dedos conforme as mãos se afastaram.

E ela usou toda aquela revolta, ânsia e terror para fazer aquele raio brilhar infinitamente mais forte, banhando a pele morena de Satori em ouro líquido.

Satori deixou que a eletricidade espiralasse pelos punhos como pulseiras. E então atacou na velocidade de um trovão, disparando torpedos finos e estrondosos contra cada esfera, surgindo pelas pulseiras e encontrando os alvos de forma certeira.

Eu não sou fraca.

Ela dizia para si mesma, golpeando de forma inconsequente, tornando-se um tornado desengonçado, mas tão forte que havia uma beleza grotesca em cada acrobacia.

Eu não sou fraca, eu não sou fraca.

Sato se perdia nos próprios pensamentos, o medo se tornou raiva, a raiva se tornou pura cólera.

"Ei... ela não é a irmã da General Pulsar?" uma caloura perguntou para o amigo

"Então isso é de sangue." ele contestou.

A Fulgora quis se virar e esbravejar "o que é de sangue?". Satori não queria ser comparada com Circe, sentia seu sangue ferver toda vez que diziam que até mesmo seu rosto lembrava o dela.

"Tu nunca irás conseguir, tu és fraca!" A irmã mais velha tinha dito na tarde anterior.

"Eu tô tentando, tá legal? Eu juro que tô tentando fazer o meu melhor, porra!" Satori choramingava, soluçando e suando de tanta dor, será que nada que ela fazia valia a pena?

"O teu melhor não és suficiente, tu não és suficiente" Circe tinha agarrado o queixo da irmã mais nova, rosnando as palavras no rosto dela.

Eu tô tentando! E ela tentou provar aquilo numa luta qualquer, mas estava tão raivosa que...

Dia e noite, noite e dia ela ignorava todo mundo por mais algumas horas de treino até que seus músculos gritassem, implorando para que ela parasse de torturá-los apenas para esquecer dos demônios em sua mente.

Até lá, Satori estava satisfeita em transformar seus sentimentos em força, os anéis se tornando luvas, os torpedos se tornando rajadas selvagens e incontroláveis, a iluminação piscando por um segundo, sofrendo com a onda de energia incessante da garota.

Golpear, acertar o alvo, desviar, golpear, desviar, defender, desviar, g...

Era um frio na nuca, um instinto ridículo de estar sendo observada quando ela mudou o alvo da esfera para a pessoa que a via. Pensou ser um calouro idiota e curioso, entrado na sala por engano ou por vontade de morrer.

Mas não era uma caloura, tampouco idiota — apesar de realmente ser curiosa. A magia desapareceu por completo dos olhos e corpo de Satori ao notar os olhos cor de canela observando-a atentamente.

—Já te falei o quão gata você fica treinando? — Cordelia pontuou, sorrindo ao notar os olhos arregalados de Sato para ela — Meu voo chegou cedo, então consegui convencer Orion a me traz-

Ela se calou no momento em que sentiu as mãos de Satori em seu pescoço, e de repente notou o quanto ela sentia falta e precisava ver aquela garota, sentir cada pelo do corpo se arrepiar, mas não pelo toque eletrizante.

Pela intensidade daquele olhar que fazia Cory se questionar se iria ser beijada ou adorada, uma paixão tão ardente que reverberava pelos ossos e se assentava como borboletas no estômago.

E então Satori a beijou, e o mundo desapareceu por completo com apenas um selar de lábios. Era como se nenhum problema realmente importasse, não quando Cordelia estava ali em seus braços.

—Quatro. Malditos. Meses — Sato murmurou entre beijos, notando que a namorada sorria com a reação dela.

—Também senti sua falta, Priskari — Cory a respondeu num sussurro, abraçando-lhe a cintura e se afastando apenas o suficiente para conseguir olhar Satori nos olhos — Mais do que pode imaginar. 

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora