—Vocês vão precisar correr muito, tudo bem? — Nathaniel repetiu pela quinta vez, observando com dor no coração as duas figuras pequenas com mochilas que talvez fossem do tamanho delas.
—Você não vai vir junto? — Morrigan perguntou, apertando a mão do irmão, um pedido silencioso. Os olhos marejados brilhando como dois sóis, repletos de medo e melancolia.
—Ele não pode — Kamari respondeu, e talvez tenha sido naquele momento que ele realmente viu a diferença entre as duas, a dureza e coragem no olhar de Kamari em perfeito contraste com a fragilidade gentil de Morrigan.
—Preciso distrair ela, desculpe — Nathaniel declarou para Morrigan, vendo-a olhar para o chão.
Ruelle não sabia exatamente o quão longe tinha caminhado até se perder entre as árvores, completamente submersa em seus pensamentos, chutando algumas pedrinhas, distraída e guiada apenas pelo próprio instinto para guiá-la para fora das árvores de volta para a Redoma.
—Gostou da minha história? — Um mago saiu da mata, seu cajado arbóreo que enclausurava uma esmeralda afundando no gramado antes de retornar, seus olhos negros vazios e os cabelos perfeitos demais para uma pessoa daquele porte.
—A gente consegue, Mor! — A irmã insistiu como um grande sorriso forjado numa tentativa de animar a gêmea mais emotiva, agarrando a mão dela como se o toque pudesse lhe transmitir coragem.
—Prontas? — Nate perguntou, olhando-as.
—Sim! — Ambas disseram em uníssono, caminhando com ele até a porta da sala, escondendo-as entre os barris perto da única janela da casa.
Elas ouviram Nathaniel chamando Inara para conversar, deixando brecha para Kamari se esgueirar, desamarrando o fitilho que unia as duas partes da janela de madeira, subindo na moldura mal lixada, esticando a mão para Morrigan subir.
E no momento que Kamari caiu, Inara soube que elas estavam fugindo.
—O que você quer? — Rue perguntou, seus olhos acompanhavam as mãos do mago, esperando o momento que ele fosse atacá-la.
—Sabia que feitiços de ressurreição mística são bem poderosos? — Ele perguntou de forma nitidamente retórica, um sorriso sarcástico se formando nos lábios pálidos como o rosto — Seria terrível se você acabasse sendo localizada por um Alto Mago que trabalhasse para a sua mãe, certo?
Ah... Entendi — A garota pensou, respirando fundo e encarando-o, um desafio silencioso sendo proposto ali, respondendo a postura arrogante com a própria.
—O que você fez? — Inara gritou antes que Mor conseguisse saltar, congelada pelo medo ao vê-la agarrar um arco e flecha e marchar em direção à janela. Kam a agarrou, e se sentiu mal ao ver Morrigan aterrissar de cara na grossa camada de neve, ambas desacostumadas com a falta de peso das asas em suas costas.
—Vem! — Kamari a apressou antes de ambas finalmente dispararem, prontas para cruzar a vazio do quintal afundado em neve antes da floresta. Mas estavam frágeis sem as asas, sem saber o ritmo que precisavam.
E aquilo às cobrou quando a primeira flecha foi disparada e Morrigan agradeceu silenciosamente por não tê-las atingido. Até que olhou para trás e viu o rasto rubro que coloria a neve como a primeira pincelada em um quadro.
—Magos como você sempre tem o terrível hábito de falar muito, não? Isso irrita — Ela cruzou os braços, observando quando ele fez uma reverência, tomando aquilo como elogio — Se quer tentar me matar, pode vir, mas não me faça perder tempo.
E aquela provocação pareceu bastar, uma mão erguendo-se da altura da esmeralda, uma energia parecendo ser sugada para a mão vazia, forçando uma esfera violeta que logo foi arremessada diretamente contra Ruelle, que conjurou um escudo cristalino com um aceno de mão, vendo a beleza quando a esfera chocou-se contra o escudo, o impacto fazendo fragmentos voarem pelo lugar como pó.
—Kamari... — Mor quis chorar, mas estava tão inspirada pela determinação trovejante nos olhos de Kamari que engoliu o choro.
—Morrigan, vai! — Ela pediu quando a viu se aproximar para ajudá-la, voltando sobre a mira de Inara — Por favor, só foge! — Ela continuou gritando ainda mais desesperada quando olhou para trás e viu a progenitora tirar mais uma flecha da aljava, mirando-a certeiramente na irmã.
—Eu não vou te deixar! Você é a minha irmã! — Esclareceu, se agachando no momento exato que a flecha disparou, escapando por pouco. Mor, aterrorizada, puxou a irmã, forçando-a a colocar um dos braços em volta de seus ombros, deixando que ela arrastasse as duas em direção a liberdade.
Elas mal deram dez passos antes de outra flecha ser disparada, raspando pelo ombro de Morrigan, manchando o fino casaco de vermelho. Elas ainda não eram tão fortes, as amarras de uma maldição recente ainda retardando a cura delas. Foi a primeira vez que Mor viu Kamari chorar.
—Por favor, me deixa e foge! — Kam pediu aos prantos, forçando o corpo para baixo, tentando se desvencilhar do aperto firme de Morrigan, mas ela não a deixou, arrastando-a ofegante sem nem mesmo desviar o olhar do trajeto.
—Você tá sempre me protegendo, me deixa te proteger também! — Ela respondeu Kamari, já exausta antes mesmo de chegarem nas árvores, mais uma flecha atingiu as costas de Kamari, mas Morrigan não parou
Então, numa decisão suicida, tomada pelo puro desespero, Kamari forçou a irmã a largá-la do jeito mais cruel que tinha: possuiu a própria irmã, e foi a primeira vez que usou possessão em alguém.
Ruelle secretamente torceu para que aquela luta fosse apenas uma batalha idiota, pois sabia que se fosse sério, ela perderia — O ritual a debilitaria durante um tempo ainda, o treinamento com Melione e o massacre pareceram sugar o resto de magia que ela tinha restante. A derrota era iminente, mas não a morte — isso sim era um evento impossível.
Ela decidiu permanecer refletindo as esferas, que ele jogava, até que uma das esferas surgiu do próprio cajado, disparando com uma velocidade impressionante em direção à Ruelle, fragmentando-se em cristais verdes, e mesmo ao ser rebatido certeiramente em direção ao mago, ela viu em câmera lenta um dos fragmentos encostar no seu antebraço.
Mor ofegou quando sentiu a consciência da irmã se chocar com a sua, tomando conta do seu corpo, controlando-a. Kamari forçou Morrigan a largá-la na neve, para então forçá-la a correr com energia renovada até que fugisse do seu alcance, e deixou que ela se perdesse entre as árvores, ignorando que seu corpo verdadeiro era alvejado de flechas.
—Lembra que eu te amo — Foi o que Kamari sussurrou na mente da irmã antes de sua alma ser puxada de volta para o próprio corpo, e nunca se sentiu tão preparada para morrer como naquele momento, onde o último vislumbre foi o vulto branco desaparecer entre os pinheiros congelados.
E Rue precisou morder a língua para não gritar ao sentir a pele quase necrosando, ardendo como uma queimadura de terceiro grau, a onda lancinante deixando-a tonta. Ela encarou com raiva o buraco rosado da pele se cicatrizar e, ignorando completamente a dor, ela marchou até o mago que tinha sido atingido por aquela mesma magia, observando-o se contorcer em dor, tentando curar-se.
E Ruelle fez questão de desenhar a runa anticura na testa dele, deixando claro o quão perto tinha chegado perto dele. Mas fazer aquilo funcionar pareceu apagar a última centelha da energia de Rue, fazendo-a cair antes de conseguir incinerar o corpo do mago por completo.
—Morrigan? — Ela se arrepiou da cabeça aos pés quando foi chamada por aquele nome, surpresa pela familiaridade que tinha com aquela voz, sem conseguir identificar quem era — Por Otsana! É você mesmo! Puta merda... quem fez isso?
A cabeça zunia, parecia impossível focar em algo quando o sangue latejava nos ouvidos e uma dor incessante como mil agulhas perfurando-a, mas ela ainda se forçou a tentar ver o homem que a chamava, mas apenas notou o cabelo crespo armado, os fios numa bagunça preto e branco. E ela tentou se lembrar de onde conhecia.
E no final das contas, Ruelle não estava focada ali, ignorou se ele era mau ou bom, se iria torturá-la, se iria tentar matá-la. Não importava.
Precisava descansar, e não se importou que fosse nos braços de um desconhecido.
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Noite Eterna, Coração Etéreo
RomanceRuelle é uma entidade criada para proteger o mundo, mas talvez o amor cegante possa comprometer sua missão e fazê-la destruir tudo aquilo que ela nasceu para preservar. Satori é uma jovem adulta com grandes poderes, mas talvez nem todo o poder do mu...