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Lysandre sequer conseguia ocultar a paixão pelo lugar onde viviam: observando com tanto esmero a forma com que o campo se estendia ao redor daquela modernidade rústica da casa deles.

Durante os séculos, o druida se sentiu cada vez mais forte conforme a natureza selvagemente retomava seu lugar de direito, e tornava intocável a casa e o pequeno templo que se erguia um pouco atrás. Ele subia no topo das árvores que formavam uma barreira natural que os separava da civilização próxima. Uma redoma que ele sequer tinha se preocupado em criar.

—Você... Urgh! — Ouviu a voz de Ruelle antes de vê-la mergulhada no pequeno lago cristalino, banhado pelo dourado do pôr do sol. Os cabelos que outrora se erguiam em cachos volumosos, agora lisos e completamente ensopados. Quando ouviu a gargalhada estridente de Kaz, sabia que aquilo era obra dele. — Eu vou te matar!

E ela realmente se levantou num ato amedrontador de fúria, os olhos tornando-se infinitamente negros quando ela começou a golpear incessantemente o amigo com socos e chutes, todos agilmente defendidos pelo garoto que ainda estava desengonçado, abalado pela própria risada.

Aquele tipo de cena era comum entre eles, e sempre servia de lembrete para as duas certezas que ecoavam pela mente de Lysandre com a mesma clareza que o sol banhava aquele campo:

Um: Eles estavam perdidamente apaixonados um pelo outro.

Dois: Um deles morreria antes que pudesse dizer as palavras "eu te amo".

Os olhos esmeraldinos de Lys brilhavam com admiração e diversão ao vê-los correr um atrás do outro, a trança de Kazuha completamente desgrenhada, e Ruelle ainda o perseguia com uma vitalidade admirável, mas no rosto outrora raivoso, um sorriso radiante brilhava.

Mas era aquela mesma beleza na interação pura entre duas das criaturas mais fortes que já pisaram na terra, que também esmagava o coração de Lysandre nas costelas com pesar e amargor.

A morte lhes era como uma sombra que estava sempre à espreita, buscando o momento em que um deles viria ao seu encontro, e Lys se viu dando a vida apenas para que Rue e Kaz pudessem viver um único momento como amantes normais, sem se preocupar se teriam a casa invadida por heróis egoístas.

Ruelle tinha perdido tudo, mesmo quando tentava reconstruir, mesmo quando Kazuha tentava transformar o seu trauma em algo que ela pudesse enxergar com carinho, não precisava olhar por muito tempo para ver o quão cansada ela estava.

A mulher negava a vitória de todos aqueles que um dia desejaram o pior para ela — mesmo que soubesse que eles tinham ganho, toda vez que ela tinha medo de amar, toda vez que ela se cansava.

Eles ganharam.

Mas todos os devaneios dos amigos que observavam a cena congelaram no momento em que Ruelle se curvou, a mão cobrindo a boca por um momento, e quando afastou... todos sentiram o cheiro do sangue dela, e isso fez Kaz voltar imediatamente, sem sequer um vestígio da diversão de momentos atrás.

Em um momento, ele estava correndo em direção a ela com uma velocidade maior que era possível acompanhar, a pegando no colo com uma fluidez surpreendente. E no outro, era como se eles nunca tivessem estado ali.

Velhas sequelas permaneciam na Ruelle, e feitiço algum curaria aquilo.

Os poucos que conseguiam ver a redoma invocavam heróis para invadir o lugar. Naquela noite, Ruelle estava oculta entre as árvores junto com Kazuha e Lia, eles viram os heróis cruzarem a mata e aparecerem no campo, ao menos uns vinte deles.

Num movimento fluído como uma serpente, Ruelle se arrastou até a grama quando o último herói de armadura dourada cruzou a barreira, as suas garras tocaram a cabeça ao mesmo tempo que seus olhos mudaram de formato para um negro profundo com apenas um reflexo azul gélido.

O homem virou pó assim que o toque ocorreu, suas cinzas foram levadas pelo vento. O azar foi que mais quatro se viraram em sua direção e correram em disparada para a mulher. Kaz foi o herói da vez, teleportando um deles para o topo da redoma, vendo-o cair e ser empalado por um galho.

Lia, por sua vez, cuidava dos que mais estavam perto da casa, cegando-os e derretendo-os com labaredas prateadas que iluminavam por onde passavam em lâminas cortantes. Mas quando se observava Ruelle, via aquela esfera cegante, como a invocação de uma supernova lançada numa heroína de longos cabelos ruivos. A bola penetrou armadura, pele, músculo e osso antes de sair e se embrenhar no pescoço e subir por sua face como uma gosma viva, derretendo tão grotescamente que a pele se fundiu com as poucas partes da armadura que não se derretiam.

Quando se deram conta, por algum motivo, todos pareciam caçar a cabeça de Ruelle que lutava contra ao menos uns nove de uma vez, enquanto outros mantinham seus amigos ocupados. Ela golpeava até sentir sangue escorrer pelo nariz e a dor de cabeça se tornar insuportável. Roubava o ar de alguns, fervia o sangue de outros e apenas perfurava o coração ou a cabeça dos mais novos.

Estava se cansando, o ar nem mesmo chegava aos seus pulmões quando o último homem foi morto. Ruelle se obrigou a respirar fundo e endireitar a postura, ajeitando os cachos brancos como se estivesse cansada apenas de correr ou algo assim, ignorou os pulmões em chamas e a mente derretida pelos próprios poderes quando olhou para os amigos.

—Chegou perto do limite? — Lia perguntou preocupada com o único filete de sangue que escorria do nariz e manchava os dentes de Ruelle, que negou com a cabeça.

Tinha passado o dia todo ajudando Melione com a magia dela, e utilizando tanto em um dia sem poder descansar... aquilo era o mais perto que Ruelle chegava da morte. Aquela sensação de sufocamento, como se alguém revirasse suas entranhas, era o suficiente para matar uma pessoa, mas não ela. A sua segunda maldição era a imortalidade.

—Você disse que não tinha chegado perto do limite ontem! — Kaz andava de um lado para o outro no quarto da garota que tentava com afinco se levantar da gigantesca cama de lençóis negros e vermelhos com uma força que claramente não tinha no momento — Vivemos mais de 800 anos juntos, e você ainda esconde isso de mim? Coisinha!

—Porque em todos esses 800 anos juntos, você ainda tem a mesma reação exagerada toda vez que isso acontece — Ela reclamou, finalmente desistindo de tentar se levantar, cruzando os braços para o homem que ainda perambulava — Viu? você age como se eu realmente fosse morrer a qualquer momento! Você fica histérico!

—Não é porque você não pode morrer, que você não pode se ferir — Ele a lembrou, parando por um momento e arrastando-se até a cama para deitar no peito de Ruelle, apenas para ouvir a batida estrondosa do coração dela.

—Eu tô bem, Kaz — Ela sussurrou para ele, abraçando-o contra si, sabendo que ele precisa ouvi-la respirar, se lembrar toda vez que, quando aquilo acontecia, que ela não podia morrer. Não havia lâmina que furasse fundo o suficiente, doença que a abalasse. Ela era indestrutível, uma verdadeira força da natureza.

E ele ainda tinha pesadelos com a primeira vez que ela se esgotou de magia, tão fresca na memória como a última refeição que tinha tido.

Eles caminhavam pelo mato, correndo dos caçadores de bruxas, Ian se esgotava de tanto teleportá-los, Ruelle tinha estabelecido toda a sua concentração num escudo que os envolvia e os acompanhava mata adentro e refletia as flechas e tochas que eram arremessadas.

Passaram ao menos uma hora correndo antes de Kaz se esgotar e Ruelle precisar manter os escudos e atacar os infinitos exércitos que os perseguiam. Assim que eles viraram as costas e sumiram de vista, a mulher caiu inerte, ferida e arranhada por galhos e gavinhas que rasgaram as roupas finas.

Ela acordou apenas na noite do dia seguinte, não andava, não enxergava e mal ouvia direito, como se ainda estivesse em um coma que lhe desse apenas a capacidade de falar e nada mais.

—Você precisa tomar cuidado — Era o que ele sempre falava, mesmo com a certeza de que nunca seria ouvido.

—Preciso descansar um pouco e vou ficar bem, eu te prometo — Ela respondeu, beijando-lhe a cabeça, afagando-o enquanto ele ainda acalmava a si mesmo.

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora