Naquela noite, Ares acordou sozinho no calabouço, Sorscha e Andrômeda desaparecidas — ele sabia que elas não teriam ido longe quando viu Cresseida na sua frente, sem sequer piscar para as celas vazias.
—Já sabe o que tem que fazer, garoto — Ela o lembrou, mas ele franziu o cenho enquanto se endireitava para ficar de pé.
—Mal faz dois dias desde a última vez, por que de novo? — Ares questionou com dúvida e frustração, mesmo que atravessasse obedientemente a porta já aberta.
—Não há tempo definido — Cresseida argumentou com nítido estresse e preocupação. A Rúnica nunca estava preocupada, por que estaria naquele momento? — As lutas acontecem quando eu decido.
Ele não a respondeu, conturbado demais por um repentino calafrio conforme caminhava à frente da mulher. Seguindo a mesma estrada naquela noite mais iluminada que de costume, incomodado com algumas poucas pedras que encravavam momentaneamente em seus pés para saírem alguns momentos depois.
Mas quando chegou na arena, viu Misha de imediato no camarote, assim como Morwenna e Lazarus. O que estava acontecendo? Ele se perguntava extremamente preocupado. Mas Ares, mesmo abalado pela confusão, ainda pulou aquele pequeno muro entre a arena e as arquibancadas, tomou sua posição de costume e esperou. Daquela vez, foi Cress que o estendeu as cinco pequenas esferas de metal antes de deixá-lo sozinho na arena
Ele olhou ansiosamente para o portão do outro lado, esfregando os pés na areia suja como se aquilo fosse aliviar sua tensão.
Mas nada, nada o prepararia para os dois guardas que jogaram a sua rival na arena e fecharam o portão metálico com a mesma velocidade.
—Não — O sussurro saiu como uma lufada de ar entrecortado, Ares já conseguia sentir os olhos marejados quando viu Andrômeda à sua frente, totalmente perdida — Não, por favor — Ele gritou olhando diretamente para o camarote — Qualquer um, menos ela.
—Um duelo até a morte — Cresseida anunciou, mas ela sequer terminou de falar quando Ares tentou escapar da arena pela primeira vez e chocou-se contra uma barreira mágica — Dois entram, mas apenas um sairá vivo das nossas arenas.
—Ares, me mata — Andrômeda declarou.
—Não, eu não vou derramar uma gota do seu sangue — Ares se recusou, e percebeu que a cada passo que dava, ela recuava dois. Estava tentando se controlar. — Andy, tá tudo bem.
—Eu não vou, eu não vou — Andrômeda continuou recuando, sabia que Ares estava se aproximando com a intenção de tirar o controle, forçá-la a atacar ele.
Mesmo com aquela súbita mudança da amiga, Ares conseguiu ver um reflexo daquela velha criança assustada dentro da imensidão escarlate dela.
—Tá tudo bem — Ele sussurrou — Eu sabia que isso ia acontecer, tá tudo bem.
E era verdade. Ele sabia que nenhuma pessoa daquelas várias cobaias seria o suficiente, Morwenna sem querer o tinha dito que, em algum momento teria que lutar contra algum dos seus amigos.
Sorscha e Ares já tinham decidido que o garoto morreria na batalha, totalmente crédulos que seriam eles a lutar um contra o outro: achavam que eram os únicos que lutavam em alguns dos momentos de tortura.
—Ares não chega perto — Andrômeda gritou, mas ele não parou, cada passo ditando seu destino. Ele a viu chorar, mas seu coração não pesava.
—Eu nunca conseguiria viver sabendo que seu sangue está nas minhas mãos — Ares a respondeu como se aquilo diminuísse o impacto — Eu quero que seja eu a morrer. Você merece ter uma chance de ver o mundo pelo lado de fora.
—Por favor — Ela chorou, desesperada quando suas costas finalmente encontraram a barreira mágica, ela prendia a respiração trêmula como se aquilo impedisse o cheiro de sangue e carne de se propagar — Por favor, eu não quero te machucar.
E então ele deu mais dois passos antes de ver aquela selvageria se acender, e com um rugido selvagem, ela o atacou impiedosamente. E ele não tentou impedi-la.
—Eles são nossas melhores chances e você os coloca para lutar um contra o outro? — Misha questionou se levantando da cadeira de súbito, enraivecida com Cresseida — Pare isso, agora.
—Não recebo ordens de você, Misha.
Morwenna encarava a luta enquanto tentava engolir o próprio choro engasgado na garganta como uma rocha que tampava o curso de um riacho.
Ares sentiu o exato momento que os dentes afiados de Andrômeda encontraram seu ombro, espalhando uma dor que poderia fazê-lo chorar pelo corpo, como um veneno que ardia em contato com seu sangue.
Queimava como colocar o dedo pouco acima das chamas de uma fogueira, parecia corroer a carne lentamente. Mas ele escondeu com afinco cada reação conforme passava a mão pelo cabelo dela.
—PARA COM ISSO, ANDY! — Sorscha gritou dos portões de um dos lados da arena. Ela estava chorando, provavelmente em prantos pela forma que cada palavra parecia a um fio de se embolar num soluço.
—Por favor, me mata — Andrômeda sussurrou no ouvido de Ares num intervalo de tempo conforme engolia o sangue do amigo, que não parecia saboroso como os outros... o pesar, a culpa era maior do que a fome, mas o descontrole era maior que qualquer sentimento — Acaba com isso, eu não quero viver assim.
—Viva por mim, então, porque não vou ousar sequer deixar que um fio de cabelo seu caia — As palavras eram uma lamúria de dor, ele sequer sabia quando tinha caído, provavelmente porque ter um pedaço do ombro arrancado doía muito mais do que cair de costas na areia.
—ANDRÔMEDA, POR FAVOR! — Sorscha ainda gritava, as palavras ecoando pela mente de todo mundo ali, a dor e o puro desespero.
Mas aquelas palavras que a garota canibal tinham sussurrado no ouvido do amigo eram o único momento de consciência antes de rosnar novamente e descer a boca para a barriga dele, mordendo-a com tanta voracidade que, mesmo tentando segurar, Ares gritou de dor.
—Eles são seus melhores soldados, matá-los é tolice — Misha ainda tentava convencer Cresseida, Sorscha os ouvia de fundo quando não estava berrando — Quer um guerreiro imbatível? Está colocando a sua elite para se matar, desde quando você ficou tão burra?
O enjôo de Sorscha ao ver sua amiga devorar o seu amigo era substituído pelo desespero, mas nada se comparava com o caos que a mente de Andrômeda estava, tentando conter a si mesma, sentindo o gosto macio da carne de Ares na língua e sempre tentando não engolir.
Mas era como apenas assistir a si mesma. Sentiu o momento exato que a pulsação dele começou a desacelerar. Era assim, então? Ela seria sempre o monstro que seus amigos tentaram impedir que ela se tornasse? Ela o retribuiria devorando-o?
—PARA DE AGIR COMO O MONSTRO QUE ELES QUEREM QUE VOCÊ SEJA, POR FAVOR — Sorscha berrou, e todas as faces de Andrômeda obedeceram à ordem. Ela tirou a boca do amigo com a repentina consciência do que estava acontecendo em todos aqueles 19 anos.
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Noite Eterna, Coração Etéreo
RomanceRuelle é uma entidade criada para proteger o mundo, mas talvez o amor cegante possa comprometer sua missão e fazê-la destruir tudo aquilo que ela nasceu para preservar. Satori é uma jovem adulta com grandes poderes, mas talvez nem todo o poder do mu...