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Os amigos de Andrômeda souberam quando ela chegou. Aquilo nunca era uma competição: ver quem era mais mutilado. Mas se fosse, mesmo que as torturas com Ares fossem as piores, Andrômeda voltava quase irreconhecível, quieta, arrastando-se e manchando de sangue por onde passava, um fantasma da criança alegre.

Ela se sentava no canto escuro, encarando o nada com os olhos completamente rubros, sempre mais vívidos até se tornarem quase neon, vazios.

Vazia.

Eles esperavam que ela começasse uma conversa, davam o tempo da garota se recuperar, Ares e Sorscha conversavam entre olhares, porque não era preciso palavras para descrever o quão deprimidos ficavam com aquilo.

Ares era o mais velho, mas tinha tido a alegria de estar do lado de fora, mesmo que por pouco tempo. Sorscha, talvez por ser o mais novo experimento, era feliz e tinha em sua mente, as lembranças nítidas do mundo lá fora.

Andrômeda nunca tinha saído do Forte dos Emissários.

Nascera naquela mesma cela, seus primeiros passos forçados para que ela pudesse se tornar um novo experimento. Eles eram mais velhos, mas durante os 19 anos de vida de Andrômeda, ela tinha sido uma coisa, nunca uma pessoa.

Por isso os dois decidiram que a educaram ali mesmo, ignorando as celas, a ensinaram a falar, se exercitar no espaço pequeno, ensinaram ela a comer de forma civilizada fora do frenesi.

Faziam o que podiam.

—Tô com fome — Andrômeda falou, sequer notando os suspiros de alívio dos amigos, ou o sorriso de diversão de Sorscha, que era um reflexo do próprio sorriso infantil da garota de cabelos azuis.

—Estamos todos, menina — Sorscha brincou, sentando-se de frente para a cela dela, mas encarando tanto Ares, quanto ela — Querem brincar?

Ares, mesmo com a carranca no rosto negro, topava. Arrancando uma lasca das grades anti magia da cela, usando a única faísca do seu poder para moldá-la numa bola.

Jogando para Andy, que já agarrava a bola com um sorriso animado. Era algo simples: deixar que a bola rolasse de uma cela para a outra, apostando quem conseguia acertar as grades mais vezes. Sorscha odiava aquele jogo, Ares ficava entediado fácil.

Mas a gargalhada de Andrômeda era impagável, e eles ficariam horas a fio jogando aquele jogo chato até que Andy disser que estava cansada. Mas então, acabando com aquele momento de paz, como se invocada pelo eco barulhento de metal contra metal.

—Sacerdotisa? Por que tá aqui agora? — Sorscha perguntou com um sorriso confuso, vendo a mulher corresponder o aceno animado de Andrômeda.

—Gostaria de levá-la para um passeio, permita-me? — Perguntou, a mãe dos dragões se levantou, sentindo-se animada pelo que lhe fora oferecido: os passeios com Morwenna eram sempre os melhores, como um pedido de desculpas para cada um.

Ares sempre recusava, Andrômeda nunca podia ir.

E os dois observaram a prisioneira baixa, porém extremamente forte caminhar ao lado da Sacerdotisa Rúnica para longe dali, Ares sempre desconfiava das intenções dela.

—O que será que elas vão fazer? — Andy refletiu como uma criança curiosa, abraçando os joelhos com um sorriso bobo — Ai, eu queria sair uma vez assim, sem fazer lada.

—Lada? — Ares notou, olhando para ela com as sobrancelhas arqueadas, esperando que ela notasse. Ela repetiu silenciosamente algumas vezes, mas não pareceu notar nada — é nada, um n no lugar do l — Ele corrigiu.

—Ah, nada — Ela repetiu, vendo-o assentir e representar seu orgulho com algumas palmas baixinhas, acompanhados pelas palmas empolgadas da menina — Eba! Acertei!

E enquanto eles comemoravam, Sorscha inspirava o cheiro de orvalho que lhe dizia que tinha chovido recentemente naquele pântano. Ela costumava gostar de caminhar nas florestas, Morwenna sabia disso, e por isso aquela caminhada até o rio tinha se tornado o passeio das duas.

—Já lhe contei a história de Yeva? — A Sacerdotisa perguntou com os olhos castanhos amarelos fixos da garota, andando um pouco atrás de Sor que, empolgada, rodopiava e saltitava entre os ladrilhos do caminho desgastado.

—Não, mas eu adoraria ouvir — Sorscha sorri como um anjo, os olhos laranja parecendo acender-se ainda mais sobre os poucos raios de sol que conseguiam atravessar as árvores. Morwenna olhou uma única vez para trás e assentiu para Lazarus, confortando-se com a presença de seu leal guerreiro.

—Bom, Yeva era uma Conjuradora — Começou sem rodeios, as mão pálidas e finas entrelaçadas na frente do manto rubro — Muito forte, mais forte que todos da família, e por isso carregou o fardo mais pesado que tem: s...

—Sacerdotisa? — Sorscha tentou, vendo a mulher assentir com um sorriso gentil. — Certo, continua.

—Ela tinha bons amigos, pessoas que ela amava, e por isso ela aceitou o cargo para protegê-los — Ela continuou, mas no momento em que o sol pareceu se esconder e um calafrio percorreu a espinha de Sorscha, ela soube que não era só uma história — No início, ela acreditava no que estava fazendo, debruçada em pergaminhos e livros, rezando dia e noite, mas quando a primeira guerra aconteceu, ela percebeu que sua divindade era só uma ferramenta, uma justificativa para aquele caos todo.

"Yeva chorou durante sete dias e sete noites, implorando para que a divindade lhe desse um sinal de que estava fazendo o certo, que apoiar aquele caos estava certo. Mas não havia voz, nem sinal, mas o recado era claro: ela estaria sozinha se apoiasse else"

"Yeva implorava para que a sua mensageira parasse a guerra, mas a mensageira adorava aquele derramamento de sangue, e por isso mentiu sobre tudo o que ela falava"

—Filha da puta... — Sorscha se revoltou, virando-se para a Sacerdotisa com um olhar de ultraje — Por que a Sacerdotisa não falou pessoalmente com os seus seguidores? Ela era como você?

—Sim, ela era uma Sacerdotisa Rúnica — O olhar de Morwenna pareceu se distanciar por um momento, sentindo os desenhos que cobriam seus braços queimar, como um lembrete que ela também tinha um fardo a carregar pelo resto da vida — E por isso não podia falar com ninguém que a seguia. Com o tempo, ela foi sendo esquecida, as mensagens sempre distorcidas e ela foi obrigada a mentir para todos que se importava: dizia que a divindade ainda os protegia, mas ela nem mesmo sabia se havia alguma divindade que ainda os ouvia.

—E ela morreu?

—E ela... morreu — Declarou por fim, e até os poucos pássaros da floresta levantaram voo com a frieza de suas palavras — A morte mais terrível que há: perdeu sua fé, morreu de espírito, e agora vaga todos os dias se perguntando para onde ia todo aquele festejo dos rituais para cultuar aquela divindade.

—Quem era a divindade? — Sorscha perguntou curiosa.

—Acho sábio voltarmos, creio que vá chover — Lazarus interrompeu, a voz forte como uma trovoada, os olhos cor de mel acesos com a beleza distinta de um Druida puro sangue. A mão no ombro da Sacerdotisa, que lhe ofereceu um sorriso, os olhos repentinamente brilhando com algo indecifrável para Sorscha, mas ela decidiu que gostava daquele brilho.

—Sim, senhor — a metade dragão de Sor sentia aquela vontade de respeitar o século de idade que Lazarus deveria ter, a sabedoria desenhada em seu rosto bronzeado com tinta preta em arabescos finos como uma coroa, e Sorscha gostou de notar que os arabescos sob os olhos e na testa pareciam uma borboleta de asas afiadas.

—Oh, após tantas caminhadas, ainda insiste em me chamar de senhor, menina? — Ele falou quase como se estivesse ofendido, a sacerdotisa levou a mão aos lábios, mas o leve chacoalhar dos ombros deixou claro que ria.

—O senhor ainda insiste em me chamar de menina, mesmo sabendo que meu nome não é esse — Sorscha devolveu à altura, erguendo o queixo em desafio.

Então ela notou o vulto de longos cabelos azulados e o mundo inteiro pareceu sumir

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora