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Morwenna nunca quis ser Sacerdotisa, o jeito que todos agiam como se ela fosse a própria divindade tinha um gosto tão amargo quanto suas responsabilidades. Lazarus era sua sombra, aquele que tornava tudo mais leve, melhor.

Naquela noite em especial, aquele lado espiritual da Sacerdotisa aflorou com intensidade. Ela estava dormindo, mas seus olhos estavam abertos, ela falava e desenhava tudo o que via.

Aquela mulher era linda, os olhos cinzentos exalavam uma brutalidade quase voraz, ajoelhada no chão de uma cela abaixo de uma caverna. O lugar estava escuro, mas um vislumbre de luz amarela e alaranjada se acendeu quando um amontoado de folhas secas e alguns poucos galhos se tornaram uma pequena fogueira.

A mulher cantou para a fogueira, e a voz dela percorria o sangue de Morwenna, ecoando pela mente de Lazarus que apenas podia observá-la receber a mensagem.

E então os olhos dela mudaram de cor para um cinza tempestuoso, oco e sem vida como uma possessão. E a Sacerdotisa acordou em prantos, caindo no chão e abraçando os próprios joelhos.

—Precisamos tirar eles de lá, agora. — A mulher insistiu.

Ninguém tinha descido para visitar eles durante o restante do tempo. Eles dormiram porque o mundo dos sonhos era mais confortável que aquelas celas que pareciam cada vez menores.

Menos Andrômeda, novamente encarando o nada enquanto a própria mente gritava em fome, raiva e tristeza o suficiente para marejar seus olhos e deixá-la confusa. Ela se sentia um nada e aquilo era pior que a morte.

E então pareceu estar acordada no tempo certo para ver Morwenna, depois de tanto tempo isolada em seu templo, sair para visitá-los. Andy sequer sabia se aquela era Morwenna ou apenas Misha disfarçada dela.

A única prova sólida que tinha era Lazarus escoltando-a.

—Acordem, preciso que acordem — A Sacerdotisa sussurrou em cada cela, então batia nas grades assustando os amigos com o som metálico repentino. — Desativei tudo, apaguei todos os homens que eu tinha: vou soltá-los e agora vocês sabem o que fazer.

—Por que agora?

Ela chamou vocês — Ela continuou enquanto cutucava as várias fechaduras com o molho de chaves.

—Qual era o nome da sacerdotisa de sangue? — Andrômeda perguntou enquanto levantava-se e recuava para a parede oposta à da grade.

—Yeva — Ela não discutiu, apenas respondeu como se soubesse, como se esperasse a pergunta. Morwenna sabia sobre Misha — Eles ressuscitaram Inara, estão cultuando agora mesmo e querem matar vocês para passar os seus poderes para ela, eu não posso deixar isso acontecer.

—Quanto tempo até eles acordarem? — Ares perguntou, já solto.

—Alguns minutos, vão precisar correr e seguir Lazarus: ele os guiará para um lugar seguro — A Sacerdotisa insistiu, e eles notaram.

—Por que você não vem junto? — Sorscha mais questionou do que ofereceu, sentindo uma pontada de dor no coração ao ver o sorriso melancólico contorcer o rosto mais pálido que o normal.

—Alguém precisa guiar eles para o lugar certo — Ela respondeu — Agora vão, e Andrômeda: Sei a raiva que sente, e estou contando com ela para que vocês escapem. Espero que esteja com fome.

—Obrigado — Andy sussurrou, prendendo os médios cabelos azuis com aquela faixa de couro desgastada. E mesmo com a garantia de controle, andava longos passos atrás dos amigos.

E Lazarus, silencioso durante o caminho todo, os guiou entre corredores e alcovas,tornando-os quase invisíveis aos olhos de todos os Emissários. Mas nada sairia perfeito, mesmo no breu da madrugada.

Eles deviam saber...

—O que estão fazendo aqui fora? — Cresseida se aproximou rapidamente, as mãos já brilhando com magia oculta para apagá-los e levá-los de volta — Lazarus? Sabe que isso que está fazendo é punível com a morte, não é?

—Andrômeda, tem certeza disso? — Lazarus sorriu para ela um pouco mais oculta pelas sombras, sentindo o olhar predatório dela em Cress antes mesmo que ela se revelasse.

Cresseida não teve tempo de abrir a boca antes de Andy afundar as garras em seu pescoço, rasgando-o tão brutalmente que sangue respingou com a violência de um chicote d'água. Nenhum dos amigos se importou em pará-la daquela vez, assistindo-a devorar a mestra em poucos minutos, a nudez dela mal durando segundos antes de sangue cobrí-la, então seus órgãos, então ossos.

Quando ela tinha ficado tão forte e letal?

—Vamos — Andrômeda voltou, limpando o sangue da boca com o próprio pulso, mas sem sucesso algum, apenas espalhando o rastro vermelho como batom borrado — Estamos esperando que mais alguém nos pegue?

—Já cuidei dos outros três que estavam vindo — Ares respondeu.

—Que merda, estamos fazendo muito barulho! — Sorscha reclamou.

—Então cala a boca por dez minutos — Lazarus a repreendeu, voltando a esgueirar-los por corredores e buracos ainda mais sombrios e apertados.

E eles rapidamente encontraram a saída, os pés nus agora sendo constantemente feridos por pedras e galhos secos. Tudo parecia um plano bem elaborado: Lazarus agarrou uma tocha já preparada, invocando a própria magia para acendê-la e guiá-los pelo pântano denso, o cheiro de mato molhado pelo lago sujo começando a chegar no nariz do pequeno grupo.

Nenhum deles ousou abrir a boca conforme a longa caminhada se estendia, Ares e Sorscha agarrando os braços de Andrômeda contra os seus protestos de não ser tocada. Andy nunca tinha passado mais que três minutos caminhando, era óbvio que tropeçaria incessantemente, reclamava de dor toda vez que seus dedos encontravam uma superfície mais alta.

O luar parecia acender-se ainda mais intensamente e iluminar os caminhos do grupo, e Andrômeda notou que os olhos ardiam e o peito se contorcia com apenas a possibilidade de escaparem. Sorscha sabia como era o mundo de fora e a cidade grande, assim como Ares tinha sido uma pessoa durante um tempo.

Andy nunca tinha visto as árvores por tempo o suficiente para saber que eram verdes, nunca tinha parado para cogitar que o solo seria bem mais macio com terra do que com pedra.

Ela gostava do cheiro de mato, era... agradável. Mas ela esquecia de tudo toda vez que sentia um pouco do cheiro do sangue dos amigos que lhe davam as mãos e a guiavam pela mata, mordia a própria língua numa tentativa de conter a própria fome que se tornava novamente dolorosa.

—É aqui que nos separamos — Lazarus anunciou, abaixando-se e mexendo perto de alguma árvore e tirando algumas fitas de metal... mordaças, focinheiras e algemas... para Andrômeda.

—Ela não vai usar isso de novo! — Sorscha se impôs, as cicatrizes de escamas em sua pele brilhando em laranja — Pode guardar isso!

—Sor... ele tem razão — Andy caminhou e abaixou-se, deixando que Lazarus amarrasse a focinheira em si, percebendo que ela era bem mais confortável e menos apertada que de costume — Obrigado pelas mudanças — Ela disse, a voz abafada pelo metal.

—Foi ideia de Morwenna — Ele respondeu, levantando-se e entregando as fitas aos amigos — Se ela tentar usar as mãos, Ares deverá usar os poderes para contê-la com isso, á partir de agora vocês estão livres: se seguirem reto, chegarão em Serane. A Sacerdotisa pediu que encontrassem os Neera e lhes entregasse esse desenho — O homem mostrou o papel dobrado, Ares tratou de guardá-lo, as diversas tranças já bagunçadas e caindo-lhe pelo rosto — Vão viver, garotos.

—Obrigado — Sorscha murmurou, estendendo-lhe a mão e sendo comprimentada por um aperto forte.

—Valeu. — Ares agradeceu de forma seca, a mão nas costas de Andrômeda e guiando-a para um pouco mais longe.

E apenas quando viram a primeira estrada de asfalto, que Sorscha perguntou o óbvio.

—E o que a gente faz agora?

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora