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O que a Natureza cria, apenas ela tem o poder de destruir. Otsana era a própria natureza, observando como um espectro os humanos tomarem esse direito dela, tentando moldar e violentar suas majestosas florestas, sugar seus belos lagos... E por isso ela moldou do nada, o povo mágico cujo a única função era proteger o próprio lar.

Mas eles falharam, unindo-se aos humanos por puro interesse, traindo o único motivo que justificava sua existência, despertando a fúria de Otsana, da Natureza.

E ela os fragmentou: criaturas indestrutíveis se tornaram uma insignificante porcentagem do que um dia foram, fracos e divisíveis em rótulos que os humanos criaram. Otsana espalhou as raças pelo mundo, pegou quase todo o poder que tinha lhes dado e se calou eternamente, nunca mais guiando seus devotos.

Mas os Druidas tentaram sua redenção com grandes oferendas e vivendo como ela lhes tinha aconselhado antes do que eles chamaram de Fragmentação. E ela lhes ofereceu um único acordo: de tempos em tempos, forjaria guerreiros perfeitos, um ser supremo que defenderia a Natureza, mas esse guerreiro deveria ter ao lado, o Druida mais corajoso para protegê-lo.

Emocionados pela esperança de se reconectar com a fonte de seus poderes, eles aceitaram e Otsana os presenteou com uma linhagem real de Druidas, os protetores. Por duas décadas eles se mantiveram tão devotos, que a Natureza lhes deu um presente a mais.

As primeiras da sua raça: gêmeas com um poder tão divino e massivo que lhes receberam um nome antigo de uma raça que um dia fez os mundos tremerem: Os Andraste. Os indestrutíveis.

Mas elas nasceram em mãos erradas, e mesmo quando Otsana tentou entrelaçar seus caminhos com os Druidas, era tarde demais e num piscar de olhos, ambas tinham sido reduzidas a quase nada do que foram criadas para ser e Otsana lhes deu um último presente.

Seriam a revolta da Natureza, o ódio de Otsana. O caos.

Ruelle não conseguia gritar quando queria vomitar, suas entranhas pareciam se consumir, derretendo e queimando-a como se ela estivesse imersa em lava. Ela sentia sua pele queimando e necrosando, uma ardência que turvava sua visão, era como ser dissecada viva.

E o medo... ela estava morrendo de medo.

E então, nada. Ela tinha morrido?

Porque ela estava no Plano Espiritual, via as finas areias Carmesim e ao longe, enxergava os gigantescos labirintos floridos. Mas ela não se movia ainda, o corpo congelado no chão, o rosto inclinado permitindo que visse quando os pés nus morenos cruzaram sua visão, vestindo-a com pele de urso que parecia anestesiar a dor dela por uma fração de segundo.

Ruelle encarou o céu, o vazio com mil planetas cintilantes que pareciam assustadoramente próximos daquele lugar que inexistia.

Inspirou fundo, levantando-se para encontrar a adolescente com chifres de cabra e olhos completamente brancos, conhecia aquela feiticeira que já tinha lutado ao seu lado.

—O que é isso? — Rue perguntou franzindo o cenho — Taryn, o que tá acontecendo?

—Eu não sei — Ela respondeu de imediato com o cenho franzido, contorcendo suas várias sardas mais claras — Você só apareceu aqui do nada, achei que não fosse voltar antes de ressuscitar Darya.

—Saia de perto dela, Taryn — Uma voz forte surgiu, e detrás dela, uma mulher negra cujo os olhos azul marinho pareciam cortar Ruelle. A jovem abaixou a cabeça para dar espaço para a senhora, caminhando para longe e pisoteando o jardim — Consegue me dar a mão, Rue? — Ela estendeu a mão enrugada, esperando que a Andraste respondesse o gesto.

—Eu não sinto meu corpo — Confessou finalmente — É como se eu existisse e não existisse: Eu preciso que faça isso parar.

—Interessante... — A senhora recolheu a mão, agarrando um relógio de bolso obsidiana, abrindo-o e observando-o, franzindo o cenho da mesma forma que a garota cabra, revezando o seu olhar entre Ruelle e o relógio, quase assombrada — Sinto muito menina, mas não deve permanecer aqui por sequer um segundo a mais.

—Não, Odessa! — Rue insistiu com os olhos arregalados, tentava se afastar da mão que tocou sua testa e fez com que a dor voltasse com a intensidade de mil infernos para ela.

Ruelle repentinamente voltou a ter consciência da realidade, conseguia ouvir Lysandre convulsionar, se engasgando com o próprio sangue ao ter a imortalidade sugada por ela que sequer conseguia fazer algo. Ela tentava respirar e conter a magia, mas era como areia escapando entre os dedos, quanto mais ela pegava, mais escapava. E além disso, quanto mais caía, mais a queimava, consumindo-a quase como se quisesse rasgar ela em busca de uma saída.

—Ruelle! — Kaz a gritou, mas ela não conseguia respondê-lo — Por favor, esteja aí dentro.

Ela sentiu o toque no segundo seguinte, os braços fortes de Kazuha a envolvendo num abraço forte. Rue quis se debater em puro desespero, gritar para que ele corresse e tirasse Lysandre dali.

Por Otsana...

Eles iriam morrer.

Ela queria alertá-los que daquela vez era diferente, que Kaz deveria deixá-la ali, mas o corpo a traiu, devolvendo o abraço e deixando que o garoto queimasse junto com ela. A única coisa que Ruelle conseguia sentir de verdade eram as lágrimas escorrendo pelos olhos estáticos, e tentou tanto focar nisso para ignorar que as suas garras se cravavam impiedosamente nas costas do amigo.

Mas quando o cheiro do sangue dele a atingiu, uma revolta igualmente potente a tomou, mas ainda parecia impiedosamente diferente. Era como um frenesi. Ouví-lo respirar fundo em seu pescoço para conter o grito de dor e abraçá-la mais forte apesar daquilo era... loucura.

"Como você costuma tirar ela do transe?" Lysandre perguntou uma vez para Kazuha.

"Morrendo".

Ruelle finalmente alcançou aquele chão duro do poço da própria magia e viu aquilo escapar pelas brechas, mas ela gritou dentro da própria mente para que aquela magia voltasse para onde veio. Não importava o que aquela coisa dentro de si queria fazer, Rue não permitiria se estivesse ferindo Kazuha — Nunca deixaria aquilo se concretizar se dependesse da morte de alguém tão importante.

E com dor no coração, ela se obrigou a sugar novamente toda aquela magia e deixar aquela coisa viva se embrenhar no seu corpo e voltar para a jaula que permanecia durante séculos, se enclausurando na parede firme que a dividia do poder. Lentamente sentiu a grama sob seus joelhos, forçou a magia que destroçou Lysandre para dentro, e transformou aquela morte em vida, curando Kazuha no momento em que tirou as garras dele.

—Ele está bem — Kaz sussurrou em seu ouvido, acariciando as costas de Ruelle, o calor do toque atravessando o top branco sujo — Eu tô bem.

Mas Kazuha estava mais atordoado do que queria confessar, porque sentiu a magia de Ruelle se moldar dentro de si e sussurrar-lhe algo que ele não queria — que não podia — acreditar. E decidiu no mesmo segundo que se levantou e ergueu a mão para Rue, que aquele segredo morreria com ele.

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora