Foi demais, mesmo para Misha, aquilo passava dos limites. Ela costumava lidar bem com essa parte do dever, mas quando as veias ao redor dos olhos de Andrômeda tomaram a mesma cor de seus olhos, fazendo-a chorar sangue, ela saiu da sala e pediu para que alguns Arautos ficassem ali.
Era o único dever dos Arautos: obedecer.
Os homens assistiam Andrômeda como se assistia a uma programa de televisão, rindo das reações dela. E a garota tentava lembrar o nome deles como se isso fosse distrair a mente dela.
PRimeESiAm? COrviMaIDiA?
Ela não sabia, e nem se importava tanto assim, mas sabia que podia mudar aquele aroma ácido neles. E ela queria. Olhou para eles, que nem mesmo notaram até que um apontou para a cabeça contorcida na maca, mesmo com todos os espasmos, sua cabeça estava repentinamente firme.
Andrômeda queria que eles sentissem uma pequena parcela do que ela sentia todos os dias, era uma vontade acima de tudo — a sede de vingança era como um acompanhamento perfeito para a fome voraz que crescia de forma selvagem e mais descontrolada que nunca.
No primeiro gemido de dor da figura mais alta, ela sorriu por trás da focinheira, assistindo eles se contorcendo de dor, e o cheiro enjoativo da tranquilidade ser substituído pelo aroma forte e doce do medo. Andy teria rido se sua mandíbula não doesse tanto.
Daquela vez ela aceitou o líquido tranquilamente, saboreando a tortura até a última gota. E então deixou que eles voltassem para a tranquilidade, sabendo que não havia mais dor a ser sentida ali.
Eles começaram a desamarrá-la para levá-la de volta para a cela, primeiro os pés — sempre os pés, para que pudessem mantê-la devidamente antes das mãos.
E então, enquanto um lhe agarrava os pés, o outro soltou sua mão esquerda, tremendo ao ser observada por olhos que sequer piscavam, Andrômeda nunca tinha sentido tanta fome.
Ela deixou que a soltasse, e se sentou na maca, balançando as pernas, esperando quem seria o primeiro corajoso a tocá-la enquanto ela mesma arrancava os catéteres de forma indelicada, um fio de sangue no braço escorrendo com a agressividade.
—Vamos, pare de brincadeira, Andrômeda! — Um deles pediu e recebeu um olhar mortal, silencioso. Mas não pela máscara, Andy estava silenciosa demais, e aquilo os assustou.
Então o segundo Arauto foi menos delicado, agarrando o pulso dela para arrastá-la de volta à cela. E o que aconteceu em seguida foi tão confuso para Andrômeda...
Ela só sabia que estava com muita fome, e que estava bem mais forte do que um dia fora. Andy se acostumou a controlar seu frenesi, sabia como não ferir inconscientemente ou deixar que aquela fera dentro de si a dominasse e comesse tudo.
Mas... não havia fera daquela vez, era como se...ela fosse a fera, no final das contas.
Eles gritavam, o barulho de vidro quebrando-se e inox contra o chão, mas ela não sabia como parar, arranhava e socava-os e Andy sequer sabia lutar! Era como a cobaia realmente fosse um puro fundo selvagem, desfigurando um deles com as garras, vendo quando o outro implorou para que Misha abrisse a porta, batendo contra a tábua de madeira bem polida como se isso pudesse salvá-lo de Andrômeda.
Mas não podia, e ela estava inebriada demais pela fome quando levou as próprias mãos até a máscara, sentindo o metal se retorcer com a força que ela tinha, as unhas perfuraram a focinheira e ela precisou puxar apenas uma vez para arrancar a máscara dela.
—Monstro! Não! — Ele gritou — Porra, Misha, abre essa merda de porta!
—Eu já tentei fazer isso — Andrômeda notou, deixando que a focinheira caísse como se fosse uma caixa metálica de tortura, manchada de sangue e com aquele pequeno pedaço da língua já bem cicatrizada — Eles não costumam nos ouvir quando imploramos.
Ele olhou para ela, os olhos azuis brilhando com terror conforme ela caminhava até ele, e o homem percebeu que preferia morrer do que viver com aquele sorriso cínico e largo gravado em sua mente.
—Por favor...
—Foi mal, amiguinho, é que eu tô morrendo de fome — Ela falou, mas Andy queria chorar, aquela voz não era dela... era aquele tom rouco, quase um rosnado... ela não era assim... era boa.
Ela o prendeu contra a parede, que rangeu com o impacto. Então Andrômeda arreganhou ainda mais os dentes antes de cravá-lo direto na jugular do homem, letal, rápido, e como ela mesma costumava comentar:
Morder a jugular é tipo beber água da fonte, só que sangue, e do pescoço.
Andrômeda nem gostava tanto assim da carne, mas o sangue... era viciante, ele chorava e berrava, mas ela não parou. Ele se tornou um amontoado de nada, sem vida, e ela não parou até que cada maldita gota do sangue dele fosse para seu estômago.
E então ela olhou para o outro lado da sala esterilizada, viu a outra figura que a olhava, mas Andy tinha desfigurado seu rosto, um dos olhos parecia prestes a saltar do rosto por falta de estrutura, a boca escancarada.
Mas para Andrômeda, aquilo não era vida, não... era COMIDA.
A cobaia sequer se importou se era um cadáver ou não: sugou todo o sangue dele, e estava prestes a começar a comê-los quando a porta finalmente se abriu.
—QUERO MAIS — Andrômeda rosnou com um sorriso assustador, sequer percebendo quem ameaçava antes de saltar em direção ao pescoço, correndo como um quadrúpede pela sala.
Mas então teve o pescoço agarrado com mais força do que uma pessoa deveria ter, ela tentou rosnar e se debater quando foi levantada até os olhos da pessoa.
—Se me morder, Andrômeda, eu te mordo de volta — O homem ameaçou e ela rosnou para ele. E ele realmente rosnou de volta... espera...
Ela reconhecia aqueles olhos caramelos, eles sempre estavam brilhando junto com os da Sacerdotisa. Era seu protetor, Ezekiel. Ela gostava de Ezekiel, não se importou em deixá-lo vivo.
—Tá calma? — Ele perguntou para a garota e ela assentiu uma vez, limpando o sangue que respingou no queixo com os pulsos limpos, colocando as mãos atrás de si. — Vamos voltar para seus amigos? Eles estão preocupados.
Amigos?
Quem... Amigos?
Misha abaixou a cabeça ao lado de Cresseida, narrando-lhe o que tinha ouvido enquanto as câmeras mostravam toda a brincadeira grotesca de Andrômeda com os arautos.
Cress ergueu uma mão esguia para que a gravação fosse pausada, pediu para que voltassem pela terceira vez, quadro por quadro antes de pedir para o arauto-segurança parar.
—Desde quando ela faz isso? — Cresseida perguntou e Misha sentiu o estômago revirar: era aquele dom especial que tinha tornado Andrômeda uma presa interessante, aquele dom de transmitir sua dor para os outros, tranformar-se num boneco vudu. — Estou falando com você, Conselheira.
—Não sei — Ela mentiu, as palavras rolando com suavidade e facilidade pela língua — Não faço a mínima ideia do que ela fez — Enrolou, as mãos atrás das costas apertando-se com mais força numa tentativa de manter-se firme.
—Então devo-lhe bater palmas, fez o seu trabalho melhor do que o esperado.
—Agora ela vai sair das celas? — Misha perguntou esperançosa pela velha criança.
—Não seja tola — Cresseida soltou uma risada anasalada — Seu foco será o garoto agora.
—Mas Ares já é forte por si só: o único deles que sabe lutar — A cientista tentou desviar, relembrando-a dos resultados antigos.
—Eu não te perguntei se ele já está forte: eu quero guerreiros imbatíveis, os fortes eu já tenho — a mulher falou com tanta arrogância que Misha não pôde evitar fantasiar como seria o som da cabeça de Cresseida caindo no chão de madeira laminada.
—Então assim será feito, pela Andraste.
—Pelo sangue Andraste — Cress fechou os olhos e levou o dedo médio e o indicador à testa, fazendo a conselheira rúnica repetir o movimento por respeito.
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Noite Eterna, Coração Etéreo
RomanceRuelle é uma entidade criada para proteger o mundo, mas talvez o amor cegante possa comprometer sua missão e fazê-la destruir tudo aquilo que ela nasceu para preservar. Satori é uma jovem adulta com grandes poderes, mas talvez nem todo o poder do mu...