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Cinco dias para a batalha.

Poucos deles se juntavam para jantar à mesa, então a grande superfície de carvalho escuro ficava para os mais velhos: os mestres e os Neera sentando lado a lado como iguais, Ruelle em uma ponta e Circe Rashdalle na outra como um reflexo de autoridade para cada lado.

Talon e Lysandre olhavam discretamente para Andrômeda e Ezekiel: eles sabiam o que precisavam fazer, e assim que todos se retiraram da mesa, Kazuha se separando do grupo e indo em direção à cozinha, eles foram atrás.

Darya tinha chegado há dois dias, Sage e Nathaniel ao seu lado e assim permaneciam dentro da mansão. A criança se escondia no quarto, cumprimentando os poucos que ousavam encarar seu rosto pálido e macilento pelo veneno.

Por algum motivo, Sage tinha decidido que levaria o próprio prato para a cozinha.

A parte que Kaz mais gostava de arrumar a cozinha era quando acabava, definitivamente. Mas tinha um carinho por aquelas tarefas chatas como arrumar a casa ou limpar a cozinha, era como um lembrete de que ainda tinha uma responsabilidade além da magia, lembrar que nem tudo precisa ser realmente complicado. Que tinha uma simplicidade naquilo que o fazia sentir um pouco mais humano do que realmente era.

Afinal, não era nada humano.

—Tudo bem aí embaixo, Sage? — Kaz perguntou quando notou os olhos dourados o espiarem pelo canto da porta.

—Eu só acabei de comer agora... — Ela murmurou mostrando o prato sujo - Mas você já terminou de arrumar tudo.

—Olha, na verdade não — Ele encarou os últimos dois pratos sujos e indicou a pia com o queixo — Pode colocar o prato aí, eu lavo, fica tranquila.

—Obrigado — Ela sorriu colocando o prato na pia, mas Kazuha notou as pequenas mãos agarrando a pedra cinzenta da pia com mais força do que o usual.

—Sage? — Ele chamou secando as mãos — Tudo bem? — A menina balançou a cabeça, colando-a ao lado das mãos na pedra.

—Eu prometi que não ia contar — Ela sussurrou com a voz embargada e Kaz notou uma mancha roxa se espalhando no antebraço exposto pela camiseta. — Eu prometi.

—Rue me falou sobre isso, mas eu não lembro o que é — Kazuha odiava manipular crianças, sentia o próprio estômago se revirar quando fazia aquilo, mas sentiu que precisava — Consegue me lembrar? Assim posso ajudar você com aquele elixir que ela tá fazendo.

Sage confiava em Kaz e talvez por isso nem mesmo a sua magia tenha a alertado da mentira.

—É que eu tô morrendo, o veneno piorou muito esses dias e-

—Que veneno?

—Da flecha, a que fizeram para matar a Rue, lembra? — Sage respirou fundo, se endireitando - Às vezes incomoda muito e eu preciso parar para respirar, espero que Ruelle consiga achar logo as raízes para diminuir a dor.

Kaz não ouvia mais nada, a voz da menina repentinamente parecia mais distante e ele se sentiu enjoado. Era dali, ele sabia repentinamente que o sentimento de terror vinha tudo daquele veneno... era o seu instinto tentando dizer que havia um risco real naquela guerra.

Um risco que até agora, ele nunca teria imaginado que existia.

Ele saiu movido no piloto automático, reparando nos próprios batimentos cardíacos acelerados, sentiu-se tomado pelo desespero.

—Quando você ia me contar que pode morrer, Rue? — Kaz perguntou ignorando totalmente o círculo de conversas.

A risada de Ruelle morreu no momento em que ouviu, e todos sabiam muito bem que deveriam sair sem nem mesmo serem indicados, caminhando rapidamente para o lado de fora da casa. Ezekiel decidiu que era uma boa ideia voltar, abraçando as duas garrafas de vodca cara da mesa de centro e levando-as consigo.

—Há quanto tempo você sabe? — Ele perguntou.

—Kaz.. — Rue se levantou com os olhos cristalinos repletos de mágoa, mas não tanto quanto os do amigo, que se sentia traído.

—Há quanto tempo você sabe disso? — Ele repetiu.

—Desde que resgatamos Sage — Confessou por fim, vendo-o respirar fundo e começar a andar de um lado para o outro — Eu não sabia como te contar!

—Não mente para mim, Morrigan — Ele disparou olhando-a com frustração, dor. — Eu te conheço, você não ia me contar.

—Eu posso impedir o feitiço, vai ficar tudo bem — Ela insistiu, chegando mais perto dele, mas Kaz recuou do toque. — Eu... Por favor.

—A gente tá junto há muito, muito tempo — A lembrou parando na frente dela — E você não pensou em me contar isso nem mesmo por um segundo.

—Eu juro que pensei, eu... eu só não consegui — Ela tentou, mas Kaz nem mesmo se ouvia mais, completamente perdido, tomado pelo repentino medo de perdê-la.

—Eu não quero viver sem você, Mor — Ele assumiu e as palavras a calaram — Eu...eu disse que a gente tinha a vida toda para entender o que tá acontecendo entre a gente e agora eu descubro que nós temos o que? Uma semana? Menos?

—Félix, fica calmo e me deixa falar — Ela pediu, mas as palavras se prenderam na garganta no momento em que viu os olhos marejados de Kaz Rue nem mesmo lembrava da última vez que o tinha visto chorar. Aquilo partiu-lhe o coração. — Eu tenho um bom plano, e eu não vou morrer, eu não vou te deixar, nunca.

Ruelle o puxou para um abraço, acariciando os poucos fios negros que escapavam da trança malfeita dele. A verdade é que tudo aquilo era uma mentira idiota, ela sabia bem que não havia forma alguma de impedir Inara e sua ambição.

Do lado de fora, Andrômeda escondia o rosto no pescoço de Ezekiel, a culpa do que tinham feito a atingindo.

Talon não pareceu sentir a mesma culpa do que tinha os instruído a fazer.

—Ele precisava saber, vocês fizeram um bom trabalho — Foi Lysandre que se solidarizou, o espectro tinha aberto mão de trabalhar com Zeke no momento em que perceberam que Andrômeda e ele eram a trava e o gatilho de uma arma poderosa.

O horror e o caos, o trauma e a confusão. A tortura, e o mártir.

A falsa Sage desapareceu como fumaça assim que Kaz tinha pisado para fora da cozinha, fruto da união entre a realidade alternativa de Ezekiel e a confusão mental de Andrômeda.

"Vocês dois conseguem acessar coisas que ninguém consegue. A ligação entre vós é mais fruto do instinto, do que fruto de livre arbítrio."

E era esse instinto que os tinha feito romper algo importante entre Kaz e Rue: confiança.

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora