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Observar do alto era um privilégio que apenas os integrantes da Conclave dos Caçadores compartilhavam, e um fardo que somente Circe carregava, vendo a divisão perfeita das três cidadelas.

E saber exatamente tudo o que estava oculto embaixo das belas estruturas, saber quais segredos escondiam. E sabia quantas pessoas estavam pouco se fodendo para tudo ali.

Eles queriam um título de prestígio: que tal heróis? Uma palavra vazia entre tantos, apenas um conjunto de letras sem significado algum. Era uma mentira, tudo aquilo era um maldito teatrinho ensaiado.

E, se Otsana realmente existir, terá que perdoar o sangue que inundava as mãos de Circe — e o fato de que ela repetiria cada passo para garantir que a arma cuja mira estava permanentemente cravada no peito de Satori, nunca atirasse.

—Soube do que aconteceu — Kinessa tinha a voz profunda, calma e ressentida ao entrar no quarto da amiga. Circe sentiu a mão em seu ombro, um aperto amigável enquanto as duas encaravam a vista majestosa pela varanda — Sinto muito que precise fazer isso.

—Eu não sei mais em quem confiar — Ela sussurrou, encostando os cotovelos na grade esculpida em pedra branca, inclinando-se como se isso fosse amortecer o peso em suas costas — Olho para todo mundo aqui e sinto-me uma idiota: eles são hipócritas? Com certeza, mas todos demonstram ser mais feliz que eu.

—Eu pareço feliz para você? — Kinessa perguntou para Circe.

—Tu não és hipócrita — A mulher respondeu imediatamente — Tu me ajudou a enxergar o mundo.

—Eu tinha uma amiga, sabe? Daqueles tempos — A menção fez a Fulgora se virar imediatamente para olhá-la conforme Kim apoiava as costas no parapeito e observava o rosto da amiga — Ela me lembrava muito você: via além do que as paredes tinham, via além de todo mundo.

—E qual vai ser a moral dessa história? — Os olhos dourados de Circe brilharam com amargor, mas ainda eram a coisa mais linda que Kinessa tinha visto quando o pôr do sol parecia iluminar cada traço dela — Porque vai precisar ser muito bom pra eu não sentir que estou fazendo tudo errado.

—Não tem. Eu estou viva há quase mil anos e também não sei se estou indo pelo caminho certo — Ela sorriu, um leve curvar de lábios apaziguador, retorcendo a pequena cicatriz no canto da boca — É que... é fácil se contentar, sabe? É fácil fechar os olhos para tudo e viver a vida do jeito que esperam.

—Então por que a gente não faz isso? Porque tu não me deixou fazer isso? Eu não precisava saber de nada — Circe argumentou com raiva, lembrando da dor que teria sido poupada.

—Porque você não queria se contentar — Kinessa a recordou com a leveza de uma pena — Não tem nada mais poderoso e amedrontador para essas pessoas, do que saber que você, que os outros fora dessa muralha merecem muito mais do que tem. Do que saber e estar disposto a lutar por isso.

—Eu destruí a vida de uma heroína honrada. Eu usei o meu poder para fazê-la nunca mais poder ser ela mesma e nós duas sabemos que não é a primeira vez — A Fulgora tinha aquele sentimento faiscante e indecifrável que fazia as os lábios se comprimirem numa linha pálida e a mandíbula se destacar ainda mais. — Não tem nada que eu tema mais do que a minha influência.

—Preferia que Miara tivesse essa influência? Alaric? — Kinessa soltou uma risada baixa, revirando os olhos castanhos como se refletisse e zombasse do próprio pensamento. Aquilo fez Circe sorrir sem mostrar os dentes, cedendo lentamente à amiga que lhe acariciou o rosto com uma mão — Não posso te garantir que está fazendo o certo, nem eu sei se estou. Mas sei que está fazendo o seu melhor e eu não confiaria essa missão a mais ninguém.

—Eu... Eu não quero deixar eles ganharem, Alexina não quer deixar eles levarem a melhor.

—Então não deixa, você já abriu mão de muita coisa por causa deles, não abra mão da sua honra.

As palavras ecoaram pelo sangue de Circe com um poder que nem mesmo ela entendia, um baque que silenciou o mundo dela com o simples notar que era verdade.

Satori mal olhava na cara dela, a mãe morreu acreditando que a filha era só mais uma e o pai fazia questão de lembrá-la do erro que tinha cometido todos os dias. Ela abriu mão de tudo que era importante para ela. Ela não deixaria que Alexina precisasse fazer isso, ou que outra Victoria ou Jonas perdesse tudo por fazer o certo.

Algo nela dizia que estava na hora, na hora de acabar com toda aquela dor e falta de esperança. Acabar com as pessoas que nem mais gritavam quando eram atacadas, porque acreditavam ser só mais uma isca de vilão.

Ela faria aquele broche de coroa dourada voltar a ser uma estrela.

Fazer a esperança voltar.

—Acabou a anistia deles, eu cansei — Kinessa se deliciou com as palavras nos lábios de Circe.

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora