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Os Neera não tinham medo de serem reconhecidos na rua, mas bastou algumas décadas em uma cidade pacata que passaram a apreciar a paz da vida trivial.

Então, dias antes de retornarem às sangrentas trincheiras, forjaram um pacto: toda vez que saíssem com a intenção Neera, usariam máscaras para que, durante o dia, fossem... normais.

Para que caminhadas tranquilas como aquela fossem possíveis.

Ruelle tinha visto o estresse de Melione durante a manhã, e por isso a convidou para uma caminhada até a famosa cafeteria que recebia Lia quase todos os dias.

E a Andraste se sentiu contente ao ver a necromante se camuflar como uma universitária, carregando nos braços um amontoado de finos grimórios antigos, recusando qualquer ajuda que Rue a oferecesse.

Fora da Redoma, fora do estigma de supervilões, Ruelle percebeu que adoraria viver aquela calma civil, não como humana — não tinha interesse algum na mortalidade — mas como apenas mais uma pessoa com uma centelha de magia no sangue.

O cheiro de café recém feito e pão fresco enchia o lugar iluminado pelo sol do entardecer, mesas cheias de estudantes e grupos de amigos cujo as gargalhadas enchiam o lugar receberam Melione e Ruelle — ou Marie e Prim.

Melione não demorou muito para começar a folhear os grimórios, enchendo Ruelle de perguntas sobre a execução enquanto devorava um segundo croissant.

—Duvido que conheça todos os feitiços desses livros — Melione se recostou, a cabeça já doendo ao tentar absorver as informações que vinham aos montes — Não que eu duvide da sua fluência na língua antiga, mas... é coisa pra cacete.

—Eu inventei a maior parte deles, é meio que a minha obrigação lembrar das minhas criações — Lembrou a discípula, notando o jeito que tinha falado ao bebericar mais do capuccino — Soou muito arrogante?

—Você tem passe livre — Ela respondeu com um sorriso, voltando sua atenção para o grimório que parecia abençoado pela luz solar que atravessava a parede de vidro, iluminando as palavras nas folhas amarelas dos livros encouraçados.

O mais próximo que Rue chegou de ser mãe foi ao lado de Mel, de alguma forma ela se lembrou daquilo ao vê-la ler e reler os feitiços, praticando contra uma pequena xícara de café.

Como fruto do destino, um pequeno grupo de amigos caminhavam pela praia vazia, os pés nús afundando contra a areia molhada, assim como eles se afundam num silêncio de uma imperturbável paz.

Ethan foi o primeiro a se ajoelhar ali, esperando que as pequenas ondas lavassem o sangue incrustado em seus braços, frutos de mais uma caçada contra a Ordem dos Caçadores numa aldeia local. Acima das frustrações, eles imitaram o Sombrio e lavaram-se ali mesmo, inspirando o cheiro de mar e areia como uma poção rejuvenescedora perfeitamente entrelaçado com o aroma característico dos céus pintados de cinza escuro, anunciando que dali algumas horas, o mundo despejaria impiedosamente sua raiva em gotas d'água.

Naquele tempo, a menina mal deveria ter oito anos quando cruzou o caminho de uma trupe de assassinos bem treinados pela vida. Um encontro cômico entre o processo e o resultado: o começo de uma revolta e o resultado do ódio.

A criança e o futuro que a esperaria.

Ruelle foi a primeira a ver os pequenos braços se debaterem na água, tentando arranhar o rosto carrancudo de um homem desconhecido que forçava sua cabeça para dentro d'água, ignorando a força das ondas que açoitavam sua cintura como se a própria natureza o implorasse para deixar a criança ir. Um pedido ignorado.

Então Ruelle fez questão de vestir o seu dever como a fúria de Otsana, desfazendo o nó da capa marrom surrada pelo tempo de uso, deixando que o vento a levasse para a parte seca como se lhe desse permissão para caçar o homem.

Os passos largos da mulher espirravam água antes de ela encontrar a profundidade perfeita para mergulhar, deixando que a correnteza de uma onda formando-se a guiasse com velocidade em direção ao sujeito.

Ruelle ergueu-se da água como uma demônio das águas, suas garras encontrando o pescoço do carrasco, partindo-o com a mesma facilidade que se rasga uma folha, e deixou que os restos mortais caíssem em lados diferentes, abrindo passagem ao colorir as águas de rubro por um momento.

E ela sentiu antes de ver os olhos que brilhavam como faróis prateados na água turva, Rue tocou a pele congelante da figura pequena, embalando-a nos braços sem conseguir impedir que ela alcançasse a inconsciência.

Mas a verdade atingiu a Andraste com um eco.

—Ela é uma necromante sangue puro — Anunciou assim que chegaram na areia, Lia e Ethan estreitaram os olhos bicolores para a criança, observando a beleza gentil do rosto pálido pelo frio. Ruelle olhou para Kazuha, que parecia igualmente surpreso. — A gente não pode deixar ela aqui.

—E o que você pretende fazer?

—Sente falta de Notremor? — Ruelle repentinamente perguntou para Melione, vendo-a desviar o olhar dos livros para ela com suspeita reluzente — É só uma pergunta.

—Eu sei, é que... — Mel reconsidero, balançando a cabeça com um pequeno sorriso, debruçando-se sobre os grimórios — Tem como não sentir? Ainda espero que possamos visitar lá de novo, naquela cidade montanhosa.

—Qual é o seu nome, garota? — Ruelle perguntou alguns minutos depois que ela acordou, deitada na gigantesca cama da Andraste, coberta em lã de primeira qualidade.

—Não tenho um — A menina respondeu com a voz fraca, a declaração dolorosa como uma flecha diretamente no coração de Ruelle.

—Todo mundo tem um nome — Insistiu com um tom mais tranquilo, mesmo que a verdade ecoasse em sua mente: Aqueles necromantes puro sangue eram considerados sinal de azar, a morte iminente de entes queridos. Mas se eles não possuem um nome, não possuem uma família para "amaldiçoar".

—Eles não quiseram me dar um nome — A voz era repleta de mágoa, os olhos castanhos esverdeados reluzindo com lágrimas, consolada pelo toque quente da mão de Ruelle ao afastar os fios dourados de cabelo do rosto da criança.

—Então deixe-me te dar um, tudo bem? — A velha Andraste tentou fazê-la sorrir com a declaração, contentando-se com o curvar dos lábios finos, ainda azulados pelo frio, mas a cabeça balançando em positiva — O que acha de Melinoe?

—Meli...one? — A garota tentou repetir, fazendo Ruelle sorrir com o pequeno erro.

—Acho que assim funciona também.

Noite Eterna, Coração EtéreoOnde histórias criam vida. Descubra agora