A crisantiana sentiu falta de algo que já há muito tempo sumira. Algo que ela não encontrava nem nas olhadelas no espelho e nem quando voltava a atenção para dentro de si. Não encontrava mais a mulher corajosa que arrancou um bebê do palacete em chamas dos reis e saira com queimaduras de terceiro grau espalhadas por todo o braço esquerdo. Sentiu falta daquela coragem, daquela mulher corajosa. Naquele momento, em meio ao caos de D'Ávila, tudo o que ela queria era esconder-se em um canto negrume e não ter que enfrentar nem a própria sombra. O que continuou a movendo, sempre em frente e com a cabeça erguida, foi a figura de Nafré. Não sabia como podia, mas ela não parecia ter medo algum, sua irmã mais nova. A mesma garota que tentara matar um rato em sua cozinha com uma frigideira meses atrás.
A chuva cortava-lhes a pele, caindo ríspida e frígida pelos pedregulhos daquelas terras escorregadiças.
D'Ávila era uma zona de guerra assumida. Foi onde tudo começou. Foram os davilianos que subiram as barricadas contra os soldados, que cortaram laços comerciais com a coroa, que quebraram a rica economia das quais o rei dependia.
Mas D'Ávila não tinha soldados. Não tinha o armamento que a coroa tinha. Tinha apenas nativos com sonhos de liberdade e justiça. Tinha fugitivos abrigados como os crisantianos. Tinha Nafrés e Gaias, Carús e Caidens, Gisèles. Para eles, aquilo era suficiente.
- Fiquem perto - Nafré ordenou enquanto desciam as vielas escuras daquelas terras.
Nenhuma iluminação alumbrava as ruas. As almas - das desalentadas às determinadas - uniam-se ali, como se fossem clamadas para aquela guerra.
- Os tempos vão mudar - Carú pegou-se murmurando. - Me arruma uma arma, loira?
Nafré olhou para trás e viu a mulher com a qual não se batia. Entretanto, não hesitou em levantar a blusa e tirar a faca de cozinha guardada na calça. Ela estendeu-a à mulher cujos cachos mantinham-se mesmo naquela chuva torrencial. Coli abraçou-se ao corpo da mãe. Aquela breve pausa deu um segundo para que elas se olhassem.
Gaia, Carú e Nafré viram-se próximas do fim daquela jornada, fugindo mais uma vez.
Os berros de Kaha podiam ser ouvidos através do caos daquela madrugada.
Nafré pensou que aquele era o pior aniversário de sua vida e surpreendeu a si mesma com uma risada de mau gosto.
Não conseguiram trocar mais nada além de olhares. Elas ouviram quando a barricada foi rompida pelos soldados reais. Os segundos ali seriam valiosos. Podiam custar-lhes as cabeças.
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Chamas de Petrichor {trilogia}
FantasíaEra curta a lista dos medos que afligiam a pequena garotinha de olhos cinzentos. Primeiro, Azura não gostava do escuro. Ela era nascida de Petrichor, descendente de Sonca e Marama, os deuses do Sol e da Lua. Qualquer ausência de luz causava-lhe um p...