Dia 1
Aquela mulher que intitulava-se a rainha nos contou e preferimos acreditar nela, mesmo que com o pé atrás, sobre o que encontraríamos na Pedreira. Apesar de termos ouvido verdadeiras palavras, nada nos preparou para quando chegamos aos escombros daquelas terras que eu apenas conhecia por histórias.
Pelo visto, não foram poupados esforços da coroa para reduzir seu próprio povo à miserabilidade. Covarde era o rei, que governava com a pura e única força do medo de seus subordinados - até então.
Os pedreiros nos receberam bem, os Kinos sobreviventes de mais um massacre. Nos acolheram antes mesmo de fazerem perguntas. Quando chegamos, estavam reerguendo barreiras. Como se isso fosse impedi-los de derrubá-las outra vez.
As tavernas e todos os estabelecimentos estavam lotados, transformados em postos de socorros. Foi triste a visão, não nego. E nego menos ainda que consegui suportar ver aquele povo morrendo. Não eram guerreiros, eram padeiros, trabalhadores, mães, pais, filhos, avós. Que falta de coração tinham aqueles soldados que cegamente matavam por ordens. Fico pensando o que seria tão recompensador que faria com que um ser humano matasse uma criança, um inocente.
Meu passado me vem à mente agora, apenas para me machucar. Eu já fui um desses, a quem quero enganar? O dinheiro sujo muda as pessoas. Eu mesmo mudei, mas mudo de novo. Estou do lado certo dessa guerra dessa vez. Que aqueles monstros queimem no inferno.
Dia 7
Até então, o frio nos assolou.
Ficamos sabendo que as outras terras não estavam melhores que nós. Os pássaros que conseguiam chegar de Arande, D'Ávila, Mísia e Castilho nos contavam por cartas do povo que a situação por lá era a da mais pura escassez. Gostaria de saber como Crisântemo e o rei estariam se sustentando nesses tempos.
Já estava na hora de algo ser feito.
Quando por fim conseguimos que o Sol retornasse depois de uma semana para nos trazer um pouco mais de esperança, Azura tirou a blusa que lhe cobria os braços. Foi um choque para todos ver suas tatuagens de Petrichor e eu lembro de tantos olhos brilhando.
Sim, era ela!, a garota que sobreviveu aos massacres, que instigou-os a continuar. Agora estava ali. Foi quando percebi que Azura tornou-se o rosto daquela rebelião. Nem mesmo ela percebera no que acidentalmente se transformou. Fiquei orgulhoso, por mais que isso trouxesse a ela mais responsabilidades inesperadas e me afastasse um pouco mais da garota que eu tentava reconquistar a todo custo. Talvez seja apenas um ato sonhador.
Dia 26
Há quase um mês estamos aqui.
A chegada dos Kinos foi uma grande novidade, ao ponto que não foi difícil para que o xamã tomasse algum lugar de poder ao lado da governante da Pedreira. Este arrastou Aurèlia e Aurèlia, para minha surpresa, arrastou Azura. Uma estratégia política, tenho certeza. As duas não se batem, mas Azura era o rosto da guerra para eles. Quando descobriram que ela tinha um dragão de estimação que hora e outra aparecia por lá... cara, queria poder registrar a cara dos pedreiros.
De algum modo, aquela rebelião estava comprada pelo povo e não teria volta. Sabemos que é lutar ou morrer, e que esse breve tempo de descanso que os soldados nos deram é apenas um preparo para algo maior, algo que nos destruirá se não estivermos prontos.
Mas vamos estar.
Dia 35
As barreiras estão mais fortes, mais resistentes. Conseguimos finalmente dormir um pouco mais calmos.
Eu não faço a menor ideia do que vai ser daqui para frente, não sei mesmo. Sei que estaremos prontos - é o que espero, na real.
- O que está fazendo? - Azura o chamou, fazendo-o despertar para a vida após ler e reler suas palavras naquela caderneta que o povo da Pedreira lhe cedeu quando chegaram ali.
O petrichoriano olhou por cima de suas letras garranchadas e a encontrou prostrada ali, sob a fraca e conhecida luz da lua, segurando um arco e flechas e esperando por uma resposta. Nem a viu chegar.
- Distraindo a cabeça, chefe - o homem brincou com um sorriso de lado. Seus cabelos já estavam mais compridos, ao ponto que conseguia prendê-los em um coque atrás da cabeça.
A garota riu com o título.
- Preciso que pegue o turno da noite na entrada norte, pode ser? - estendeu-lhe um facão.
O homem abriu a boca para perguntar o motivo da mudança de planos, já que aquela não era sua obrigação naquela noite. Entretanto, sabia que não negaria nada àquela mulher. Se Azura lhe pedisse para pular de uma ponte, ele o faria com as mãos atadas. Levantou-se de seu recanto nos escombros de um pequeno palco a céu aberto na cidade onde gostava de ver as estrelas e tomou o facão das mãos dela.
Azura agradeceu com um sorriso antes de partir. Aquele sorriso foi o suficiente para lhe dar quanta energia fosse necessária para aguentar mais uma noite de vigília em vão - eles ainda não vieram.
Düran fechou a caderneta e a guardou no bolso interno da jaqueta que lhe deram, tomando cuidado para que os registros que o mantinham são em noites solitárias estivessem bem seguros.
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Chamas de Petrichor {trilogia}
FantasyEra curta a lista dos medos que afligiam a pequena garotinha de olhos cinzentos. Primeiro, Azura não gostava do escuro. Ela era nascida de Petrichor, descendente de Sonca e Marama, os deuses do Sol e da Lua. Qualquer ausência de luz causava-lhe um p...