(1986) Kate: Beijo Roubado

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Cacete, que constrangimento monstruoso. Que situação surreal. Daquelas coisas que a gente coloca na conta da bebida, e só lamenta não ter bebido mais ainda para ter amnésia alcóolica no dia seguinte.

Pior que, dos meninos, sempre gostei mais do Tommy. Depois do Vince, claro. Aliás, acho que até gosto mais dele do que da Singe. A princípio a gente se aproximou por motivos óbvios, porque eu passava tanto tempo no Vince e ele estava lá. A mesma explicação pra Malu ter se aproximado do Vince, porque ele passava tanto tempo lá em casa, onde ela estava. Mas, em vários aspectos, sempre achei que a gente se parecia. Pra pegar uma coisa boba, sabe o sonho de grandeza que todo mundo tem? A gente nunca teve sonho, e sim certeza de grandeza. Teve até uma vez em que decidimos nossos nomes artísticos, ele disse que Kate Lins era muito mais sonoro que Kate Bescher, e eu falei que ele devia usar Tommy Lewknor ao invés de Tom Lewknor. Foi aí, aliás, que comecei a chama-lo de Tommy, começou como piada interna e depois não conseguia chama-lo de outro jeito. E concluí que, só por termos alcançado um nível de amizade que me levava a ser a única a usar com ele um certo apelido (se bem que tenho mania de apelidar todo mundo, acho que por trauma de ter um nome horroroso e ter sido obrigada a conviver com apelidos a vida inteira), ele havia passado a me chamar de Kay. Só o Vince me chama de Kay. É o apelido do apelido, bem curto, carinhoso, e achava até, de uma certa forma, romântico. Mas Tommy começou a me chamar assim e eu não me importei, deixei passar e me acostumei.

Não sou uma pessoa lesada. Ao contrário, pego essas coisas no ar. Acho que foi a bizarrice de toda a situação que me despistou. Às vezes estava saindo do curso, parava o carro dele na porta, dizendo que estava passando por ali e resolveu ver se eu precisava de uma carona. Tipo, é o amigo de infância do seu namorado, um cara com quem você já passou milhares de noites jogando conversa fora... Você aceita, certo? Depois veio o drama da minha permanência aqui. Meus pais são uns duros, coitados, ganham mal e mamãe adora parir, se endividaram com a Tia Lola para eu vir, e tudo bem, tô fazendo ótimo uso do dinheiro, mas até por isso eu morro se tiver de voltar. Literalmente morro. Comentei isso com os meninos uma noite, eles deram um monte de sugestões, e aí, a partir do dia seguinte, Tommy me aparece com nomes e telefones e gente que ele conhece e conhecidos de gente que ele conhece que poderiam me dar um emprego. Não me espantou, pelo menos não muito, porque uma das mil coisas em que acredito é na solidariedade do ser humano. Vários pisam na bola, mas procuro só me cercar dos melhores, e achei que estava diante de um deles.

Não que o Tommy não seja uma das melhores pessoas do mundo, mas o que diabos aconteceu ontem à noite? Estávamos saindo do Revenge, bem bêbados, diga-se de passagem. Havíamos ido só nos dois, pois todo mundo estava ocupado, eu não queria ficar em casa e, pelo visto, nem ele. Foi legal, batemos papo, tomamos todas, estamos saindo, e de repente eu recebo uma imprensada na parede e um puta beijo. Fiquei sóbria imediatamente, sem ter a menor ideia de como reagir. Quando o Tommy veio então com a insanidade de falar com o Vince, fiquei mais perdida ainda.

-Falar o que pro Vince?! Você me beija e depois quer contar pro seu melhor amigo? Você é louco?!

-Porra, não era isso o que você queria?

-Por que eu ia querer uma coisa dessas?! Tommy você em algum momento pensou que eu... – Normalmente termino as minhas frases, mas estava difícil concluir aquela.

-E não? Então esse tempo todo você estava me provocando a troco de quê?

Fala sério!

-Eu nunca te provoquei! Eu sou sua amiga, caralho! Gosto de você, a gente passa tempo junto, mas nunca na minha vida me passou pela cabeça ter qualquer coisa com você – Notei que aí eu feri o seu orgulho, e entendi completamente. Também teria ficado bastante ofendida se tivessem me dito isso, mas porra, nunca me passou pela cabeça mesmo! E aí me toquei que não estava mais no Brasil. E que de repente essa minha mania de viver tocando e abraçando as pessoas estivesse sendo mal interpretada. – E mesmo que estivesse, você não é o melhor amigo do Vince? Se eu estivesse te provocando pelas costas dele, você não deveria ter ido nele alertar, ao invés de sair me beijando?

Tommy ficou me olhando em silêncio. Ele tem uns olhos danados de bonitos, mesmo que estivessem parecendo duas poças de sangue ontem à noite, e um olhar que ou conta tudo, ou te faz contar tudo. Não é à toa que ele se acha tanto. Qualquer um com um olhar daqueles se acharia. Acho que foi naquela hora que eu entendi.

-Eu gosto mesmo muito de você – falei, pois de repente a melhor forma de acabar com aquela situação seria não dando nome aos bois. – Não vou falar nada com o Vince. Mas, por favor, esquece isso. Não vai rolar.

Achei que ele fosse me agradecer, mas sua pergunta foi:

-Nunca?

Nunca, com toda certeza. Fiquei muito incomodada com a insistência dele e contei pra Gigi, para que ela me aconselhasse como agir. Normalmente conto as coisas para a Malu que, além de ser minha melhor amiga, é super confiável e não espalha nada, mas posso estar enganada, acho que a Malu está apaixonadinha por ele e, mesmo estando na cara que não é correspondida, ela desistiria na hora se soubesse o que rolou. Não que esteja insistindo, mas a menina merece a chance de descobrir que pode seduzir o Tommy, e ela já é meio devagar para tentar as coisas, e aí que não vai se mexer nunca se souber de ontem à noite. Então falei com a Gigi, que é um túmulo e tem mais jogo de cintura, e ela primeiro deu uma gargalhada e me chamou de buceta de ouro.

-O homem mais gostoso de Londres te dá uma imprensada dessas? Amiga, na próxima vida quero voltar você.

-Foco, Gigi! Ele é o melhor amigo do Vince. Puta quebra de confiança. Ou ele é um filho da puta, ou ele está mesmo apaixonado.

-Continuo querendo voltar você.

-E o que você faria nessa situação quando voltasse sendo eu na próxima vida?

-Proporia um ménage – Claro que ela estava brincando... ou não. Com certeza era o que Gigi faria, mas o legal dela é que ela sabe que não sou uma boa menina, mas também não sou tão má quanto ela. – Agora sério, observa. O cara tá a fim de você, levou um toco, se é paixão e bebedeira mesmo, ele não vai insistir. Vai ver está numa puta ressaca moral. Aliás, vou ligar pra ele. De repente ele está precisando de consolo – Gigi deu uma piscadinha.

Ficou combinado assim. Hoje à noite os meninos vão tocar, eu sou cara de pau mesmo, sei agir como se nada tivesse acontecido. Só queria, sinceramente, não perder a amizade do Tommy. Nem ser obrigada a acabar com ela.

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Esse POV faz parte da Semana da Kate, que está acontecendo de 15 a 21 de junho no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora