Porra, por que as pessoas fazem isso? Por que esse povo é tão idiota que não percebe que a vida é bem melhor quando envolve o mínimo de drama possível? E por que eu sou tão estúpida que não noto que merdas acontecem mesmo que eu diga que não, que as pessoas não são como eu, que não adianta porra nenhuma esperar que tudo se resolva como no meu mundo, quando tem uma outra realidade totalmente diferente por aí?
Cada um tem os seus demônios. E eu sou a criatura mais insensível do mundo todo.
Cheguei ao prédio e cruzei com o Eddie no portão. Ele não tava legal. Nem um pouco legal. Mas ei, era o Eddie. Podia dar um desconto porque, se eu sou insensível, ele é o extremo oposto. Talvez devesse mesmo dar uma chance a ele, quem sabe ele me ensinasse até um pouco de sentimento e noção. Pelo menos, nossa trepada depois do aniversário do Mick foi bem acima da média. Tá vendo? Comentário sem um pingo de sentimento ou noção. Eu me odeio, cara.
-Você tava com ela? – Perguntei quando nos trombamos. Duh, também sou a mais estúpida. O que mais ele estaria fazendo ali?
-Tava – ele respondeu, e cacete, o homem tinha ficado abalado mesmo. – Aquela mulher é o demônio, Gigi.
-E como ela tá? – Eu tava perdendo a vontade de subir, juro por Deus. Não que estivesse muito a fim, pra início de conversa. Não era falta de solidariedade. Não sou uma pessoa tão ruim assim. Mas me sinto super desconfortável com qualquer tipo de situação que envolva dor de qualquer nível, e estava com a impressão que aquela era dolorosa em vários. A dor física, a dor da sua própria mãe, aquela pessoa que te enche o saco mas que existe apenas pra te amar incondicionalmente, ter levantado a mão contra você, a dor mais surda e insistente no fundo do seu cérebro de que você tentou pedir ajuda e estavam todos se fodendo porque são incapazes de entender algo que não faz parte do universo deles. Como ela mesma havia pedido. Aliás, como ela mais havia pedido desde o início daquela história.
Eddie abaixou a cabeça e deu de ombros. Ah, merda, ele falava pelos cotovelos e estava mudo pra caralho aquele tempo todo. Aquilo era uma tremenda e pavorosa resposta pra minha pergunta.
-Eu vou lá, tentar arrancar aquela bunda da cama – falei, pois nossa conversa no portão já estava tão triste que talvez ver a Malu não fosse nem tanto sofrimento assim.
-Espero que consiga. Depois me liga pra dizer como foi.
-Mas você não acabou de sair de lá?
-Acabei, mas me liga assim mesmo. Quero saber o que você achou.
Eu o abracei, subi as escadas e a Rê abriu a porta pra mim. Ela ficou super feliz em me ver, disse que Eddie tinha acabado de sair e trouxe flores, e que era bom a Malu se sentir querida porque, no momento, sua mãe a havia feito se sentir um cu. Claro que a Rê não usou a palavra "cu". Essa é a minha versão.
Normalmente, quando vou à casa da Malu, já vou entrando no quarto, mas a bizarrice dessa história me deixou em um constrangimento do caralho, fiquei toda cheio de dedos e me perguntando se não devia ter levado flores também, ou pelo menos uns chocolates. Acabei pedindo permissão para ir ao quarto e a Rê respondeu "claro que sim, tá louca?" É, acho que anda todo mundo meio louco mesmo.
Ainda assim, bati na porta e esperei a Malu responder "Entra" lá de dentro antes de entrar.
Ela estava deitada na cama, coberta pelo edredom, o quarto na penumbra. Estava uma cena meio de filme de manicômio e juro que fiquei meio com medo que ela estivesse babando e fosse pular de repente em cima de mim e tentar me estrangular com um sorriso idiota na cara, sabe?
-Como você está? – Perguntei, ainda da porta.
-Ótima – ela respondeu, e a voz era animada mesmo. Me aproximei e vi seu rosto melhor. Havia uma marca bem arroxeada em uma das bochechas, uma ferida no lábio inferior e outra na testa, acima do olho direito. Jesus Cristo, o que haveria por baixo daquele edredom?
-Você não consegue andar? – Perguntei, sem saber por que ela estava deitada.
-Consigo, sim. Só estou muito cansada. Desculpa, é falta de educação, mas você se importa se eu continuar deitada?
Ok, então talvez ela estivesse mesmo louca.
-Malu, o que a gente não fez? O que a gente poderia ter feito? E o que a gente pode fazer agora?
Ela ficou em silêncio e notei que seus olhos começaram a marejar. Ah, merda, também não sei lidar com choro, mas foda-se. A menina estava toda estropiada por obra da própria mãe, só porque arrumou um namorado na idade em que um bando de garotas já estava dando há muito tempo por aí. Ela devia estar se acabando de chorar, berrando, quebrando o quarto inteiro. Com certeza, era isso o que eu faria. Mas a Malu só ficava deitada, e nem chorar ela chorou mesmo, só ficou nos olhos marejados e disse:
-Nada, algumas coisas simplesmente acontecem. Eu só vou descansar um pouco e vai ficar tudo bem.
-A gente pode ver um filme – Tentei, desesperadamente. A Malu deitada na cama estava me enlouquecendo. Saber que eu achei que aquilo nunca poderia acontecer e não fiz porra nenhuma mesmo quando ela nos alertou estava me enlouquecendo mais ainda. – Posso fazer margaritas, que tal? A gente bebe, depois vai ao cinema. Estreou um filme com uns vampiros gatos pra caramba.
-Vampiros gatos como em A Hora do Espanto? – Malu deu uma risadinha, e isso foi ainda mais assustador que as suas lágrimas.
-Bem mais gatos. Vamos?
-Não, Gigi, muito obrigada. Estou cansada. Vou só dormir um pouco.
Caralho, que coisa mais fodida.
Não que seja sempre fácil lidar com a Malu. Sei lá, essa garota me desconcerta. Acho que ela faz isso com todo mundo, aliás, mas sou do mesmo nível de esquisitice que ela, ainda que em lados opostos, então de repente o choque é maior. No início eu achava de outro mundo ela ser melhor amiga da Kate porque, porra, a Kate não vale nada como eu, e a Malu parecia aquelas meninas de internato que nunca se misturariam com alguém da nossa laia. Era difícil achar assunto com ela e, quando a gente se conheceu, por falta do que dizer, eu a chocava. Não era maldade, era mais pra ver até onde ela iria. E aí pareceu que ela iria longe. Às vezes eu tenho a impressão que a Malu de verdade tá gritando dentro dela, e estava botando a cabeça pra fora no último ano, mas aí veio a doente da mãe dela e fez aquilo, e agora ela tinha voltado a se tornar aquele ser educado e arrebentado na cama dizendo que ia só descansar um pouco. Caramba, como se lida com aquilo? De repente comecei a sentir uma tremenda urgência de tirá-la de lá, junto com a certeza que havia sido eu que a havia colocado ali.
-E se você for lá pra casa? Você fica descansado e tudo, fica deitada na minha cama, mas a gente conversa enquanto isso.
...
-Malu?
Caramba, ela tinha dormido. Dormido no meio da porra da conversa!
Saí do quarto e perguntei se a Malu tinha tomado um calmante.
-Se tomar, ela não acorda nunca mais! Essa menina não faz mais nada além de dormir – Rê respondeu.
-Rê, não é melhor ela ir ao médico? Sei lá, isso tá pirado demais. Eu piraria se a minha própria mãe fizesse aquilo comigo.
-Ela não quer ir. Só quer descansar.
-Porra, mas precisa querer? Aí, desculpa. Mas acho que só o fato de ela não fazer nada além de ficar deitada descansando já é sinal que ela não tá batendo muito bem da cabeça.
-O Eddie disse a mesma coisa, mas acho que é o tempo que ela precisa para lidar com o choque. Vou dar mais um dia. Se ela continuar assim, eu a levo ao meu homeopata.
PUTA QUE PARIU!
Cara, tenho pena da Rê. Tenho mesmo. Porque no fundo ela é como a gente, super nova e lidando com uma filha adolescente meio maluquinha. Eu não dou conta nem de mim, imagina a Rê tendo de dar conta da Malu. Mas caralho, que merda é essa de levar a menina surtada pra tomar bolinha de homeopatia? Se a mãe da Malu é esse monstro e ela está perdida de todo, então alguém tem que tomar a frente dessa joça.
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Esse POV faz parte da Semana da Malu, que acontece de 24 a 30 de agosto no grupo Realidades Paralelas da Mari
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...