Sensação da porra, dor do caralho, vomitei as tripas. Estava fodido, estava na merda. E não sei o que era pior, a sensação ou o medo. Porque, quando aquele mal-estar monstro passasse, eu teria de enfrentar a dor, e não estava nem um pouco disposto a lidar com ela, qualquer que fosse a sua origem. O fato de ter saído de casa essa semana, a merda que fiz ontem à noite depois de todos esses anos, eu só não queria lidar com isso. Não queria nem ouvir falar, nem pensar nisso. E, automaticamente, voltei para o meu estado de fuga habitual de conseguir mais um pico e deixar tudo o que aconteceu pra trás. Curar lucidez dolorosa com esquecimento, apagar qualquer memória antes que qualquer raio de sanidade se infiltre, me perder em um paraíso onde não existe sofrimento e, se eu tiver sorte, morrer antes que a dor me alcance.
Voltei ao hábito instintivo e que deixei pra trás há dez anos de apalpar a mesinha de cabeceira em busca da droga, e vi que ela estava vazia, só havia um abajur que não era meu. Sentei e fiquei pensando onde diabos eu estava, se ainda era o apartamento da festa, mas era um lugar sofisticado demais para ser o buraco onde o Lewis me enfiou. Não era grã-fino, e ao mesmo tempo era, sabe? Uns móveis que pareciam ser de antiquário, tudo super bem arrumado, parecia que eu havia apagado em um mostruário de loja de decoração, tirando, claro, a poça de vômito que deixei no chão. Não devia estar tão mal assim, porque fiquei curioso.
Abri a porta e dei com um corredor, ao fim do qual saí em uma sala. Cara, "sala" é a simplificação do século. Era um puta salão enorme, com uma parede toda de vidro com uma varanda e uma vista espetacular de Londres, toda separada em vários ambientes por sofás e pufes e... sei lá, não entendo nada de decoração. Será que algum milionário estava na festa, se picou comigo e a gente acabou indo parar ali? Pff, mais provável que eu ainda estivesse doido. Tinha uns porta-retratos em cima de uma mesa de canto, peguei o primeiro, e havia uma foto de uma garotinha sorridente com síndrome de Down. Cara, que viagem. Quanta informação desconexa e sem sentido, e eu não conseguia juntar nada em uma linha narrativa até que ouvi a voz de um cara atrás de mim.
-Ei, fiz café. Dizem que meu café é uma aberração, mas de repente te ajuda.
Cacete, levei tanto susto que quase deixei cair o porta-retratos. Eu o coloquei em cima da mesa e me virei, e encontrei esse cara alto pra caramba, só de calça jeans, e seu tórax e seus braços pareciam uma tela de pintura. Putz, até as mãos. Conheço muitos caras tatuados, eu mesmo sou bem tatuado, mas aquele levava o conceito a um patamar totalmente novo. Enquanto me estendia uma caneca de café, me toquei que ele me era familiar. Dei um gole e cuspi tudo no chão.
-Eu sei, é ruim pra caralho. Sou o Eddie – ele me estendeu a mão.
Apertei a sua mão ainda pensando que precisava de muito mais respostas que o nome dele.
-O que eu tô fazendo aqui?
-Não sei se você lembra, mas você ligou pra Malu de madrugada.
Puta que pariu, pior que lembrava. Aliás, era uma das poucas coisas que lembrava.
-Ela não podia ir, está com a perna quebrada, não tinha como dirigir. Pediu que eu fosse, o que devia ser melhor, porque eu chegaria mais rápido. Mas não fui rápido o suficiente, foi mal. E sei que tem um lance de segredo e tal, espero que não fique chateado por ela ter me passado a bola. Ela só estava tentando ajudar.
Deu o estalo e lembrei do tal do Eddie. Na rabeira, lembrei de uma cena solta de anos atrás, quando eu saía com a Malu. A gente estava em um bar, e aí ela começou a pirar dizendo que um amigo dela tinha chegado, que ia contar pro namorado dela, me mandou sair de perto e foi falar com ele. Era esse cara. Ele a pegou pela mão, a arrancou de lá, e não vi a Malu até a noite do dia seguinte, quando ela apareceu no meu apartamento como se nada houvesse acontecido. E eu, claro, não tive a menor curiosidade para perguntar o que rolou. A droga faz isso com a gente. Entre várias coisas, mata totalmente a curiosidade.
-Senta aí – Eddie apontou o sofá. Sentei automaticamente, sem ideia do que esperar. Até onde sei, os amigos da Malu me odeiam. Não que me surpreenda, pois até eu me odiava pra cacete no momento.
-Na verdade, eu preciso ir...
-Tem compromisso?
-Tenho.
-Que tipo de compromisso?
Porra de compromisso nenhum, só com o meu passado. Só com a minha passagem de volta pro buraco. Mas eu não respondi e Eddie falou:
-Olha a merda, Rick. Prometi pra Malu que não te deixaria sozinho, e prometi pra ela que ligaria dizendo que você tá bem. Você pode ir embora, não é meu prisioneiro nem nada, mas olha a situação que isso me coloca. Amo aquela menina pra caralho e ela gosta pra cacete de você. Se você sair por aquela porta, ela vai se decepcionar duplamente comigo, e sei que você não me conhece, tá pouco se fodendo pra mim e provavelmente quer se vingar porque te fiz beber esse café, mas sei que no fundo você é um cara legal, aposto que aconteceu uma merda muito grande na sua vida, você escorregou, tudo bem, todo mundo escorrega. Mas você não quer ferrar com a sua vida inteira por causa de uma noite nem me deixar mal com a Malu, certo?
Hã?
-Sei que a droga pesa pra caramba no outro lado da balança. Acredite, já estive aí. Mas ela ocupa o prato todo. Você não tem um filho no outro prato?
Foi nessa hora que eu comecei a chorar. Caralho, eu não faço essas coisas de chorar, muito menos na frente dos outros, ainda mais na frente de um cara desconhecido. Mas lembrei que uma vez a Malu estava precisando de mim e eu usei exatamente o argumento dos filhos dela pra trazê-la de volta à real, e aquilo parecia tão certo e sólido e incontestável, sabe? Você tá fodido, você fode com a sua família, com os seus filhos. Podia estar tudo ruindo à minha volta, podia ter perdido a Julie, e nem sei por que a perdi, cacete, não faço ideia. Pode ter sido minha culpa, pode ter sido o acaso, sei lá o que foi. Mas se perder o Charlie, a culpa será minha, como foi culpa do meu pai ter me perdido.
Eddie sentou ao meu lado e me deu uns tapinhas nas costas, e a única coisa estúpida que eu falei foi:
-Vomitei lá no seu quarto.
-Tranquilo, você não foi o primeiro.
-Por que você está fazendo isso? – Achei que ele fosse responder que era por causa da Malu, a resposta óbvia. Mas Eddie disse:
-Porque já me deram segundas chances. E terceiras, e quartas. Já fui um cara bem perdido, Rick. Sei reconhecer outro. E seria uma puta hipocrisia do cacete julgar as merdas que já cansei de fazer. O que não quer dizer que vou te deixar fazê-las de novo.
-Me leva pra ver a Malu?
-Levo. Só melhora a cara que senão ela cai e quebra a outra perna.

VOCÊ ESTÁ LENDO
O Lado Escuro da Lua
RomantizmEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...