(2015) Angie: Família dos demônios, festa infernal

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Estavam todos aos berros, a tia Kate e a Alex mais que todo mundo. Que família barulhenta, nossa. Isso que dá deixar a tia Kate e a Alex a cargo das coisas. Elas cismaram de fazer uma festa surpresa para a mamãe esse ano e, como a mamãe e o tio Eddie tinham de fazer algo de trabalho na cidade, a ideia era organizar a casa nesse meio tempo. Pensei que as duas já estivessem com tudo pronto, fossem trazer um bolo e uns enfeites que, no máximo, a gente teria de pendurar nas paredes. Mas não, o tempo que a mamãe estivesse fora teria de ser usado para planejar, organizar e providenciar tudo o que faltava. E o "tudo que faltava" era exatamente tudo. Agora a Alex gritava com a tia Kate, tia Kate gritava com o papai, papai gritava com a tia Kate, tio Mick gritava com todo mundo, tia Rê se entupia de bloddy mary e ainda bem que pelo menos o tio Vince não grita. Como se não bastasse, ainda chegaram tia Sue e tia Maggie, Anna e Cindy, Fred, a Sandra, e a Rosa, que agora ainda por cima está completamente surda, resolveu dar pitacos berrando na nossa orelha.

Não sei ser assim. Juro que não.

Papai diz que as coisas não foram sempre desse modo. Ele diz que havia uma época que os Lewknors eram uma respeitável família inglesa que falava em um volume de voz normal, até que um avião dos infernos largou a mamãe e a tia Kate na nossa ilha e elas contagiaram todo mundo com o vírus da estridência. Com exceção da Rosa, que não foi contaminada, mas largada aqui pelo diabo em pessoa.

-Voy a hacer chicharrones! Donde está la baña? – Rosa começou a gritar por cima de todo mundo.

-A mamãe não come banha, Rosa. Ela faz dieta – Victor tentava explicar.

-Sí, donde está la baña? – Rosa, que não conseguiu ouvir uma palavra do que o Victor explicou, continuava gritando.

Começou a me dar desespero.

Olhei para a Emily e ela estava olhando para mim. Imediatamente, suas mãos começaram a se mexer:

"Vamos à casa da árvore?"

"Não dá tempo!", mexi as mãos de volta.

"Dá, sim. Vamos, Angie"

Eu e Emily passamos pela multidão da sala, fomos até o quintal e subimos a escadinha que dá na casa da árvore. É meu esconderijo e da Emily, não que só a gente o use. Aliás, todo mundo passa por aqui, a casa da árvore na verdade foi construída para mim e para os meus irmãos, a Alex, o Victor e o tio Eddie a usam o tempo todo para pular na piscina, mas no fundo todos sabem que é meu lugar e da Emily. Aqui é calmo, ao contrário de todo o resto, só que dessa vez eu estava nervosa de verdade, pois éramos um monte de gente correndo atrás do rabo sem chegar a lugar algum, e a mamãe estaria de volta a qualquer minuto.

"Não fique triste, Angie. Vai ser uma festa linda."

-Não vai ser nem uma festa, Emily! Só o que temos é gritaria, e daqui a pouco a minha mãe chega e a Rosa vai estar fritando banha! Por que a nossa família não pode ser normal?

"Porque é a família da dinda"

Acho que, com isso, a Emily quis dizer que a minha mãe não é normal, né?

Não que ela seja.

Às vezes eu acho que tudo o que queria na vida era a que a mamãe fosse mais como o papai. E acho que tudo o que a mamãe queria na vida era que eu fosse mais como o Tommy. Isso significa que tanto mamãe e papai quanto eu e Tommy somos como água e azeite. Mamãe criou a gente com mão de ferro e papai sempre foi muito mais liberal, mas não é isso que me incomoda. Acho que são os gritos, quando está feliz ou quando está triste. E, principalmente, o fato de eu não ser a sua menininha, como a Lily é, por exemplo. Eu e Tommy somos completamente diferentes, eu nunca fui muito feminina, e cacete, o Tommy é gay! Eu não, eu não sou lésbica. Mas a mamãe acha muito mais fácil aceitar um filho homossexual que uma filha que não veste rosa e sapatos de salto alto.

-Às vezes não me sinto parte da família – O que é algo que não digo para ninguém no mundo, só para a Emily.

"Não! Não fale isso que é feio, Angie!" Emily arregalou os olhos. "Você não grita, mas é parte, sim! Eu também não grito! Eu canto! E sou parte! Cada um faz uma coisa diferente e faz parte!"

-Não faço nada diferente. Sou muito comum.

"Você segura a porta pras pessoas"

-Isso não é fazer alguma coisa, é educação.

"E ajuda a fazer o almoço"

-Não vou deixar a minha mãe enrolada.

"E arruma tudo e ajuda todo mundo com o material da escola"

-Nossa senhora, eu sou a mamãe? – A constatação me pegou.

"A dinda cuida da gente. Você também".

-Ah, não é verdade, Emily, olha o caos que é essa casa! Alguém precisa organizar alguma coisa, porque... – Fui interrompida com o meu celular apitando, e meu coração imediatamente acelerou de pânico. Olhei e era exatamente o que eu achava que fosse: Uma mensagem do tio Eddie que dizia "Estamos chegando". – Ela está vindo, Emily! E a Rosa ainda nem deve ter esquentado a gordura da banha! Vamos! Vamos! Ah, que droga! Por que o tio Eddie tinha de ter resolvido avisar justamente a mim?

-Porque você é a chefe de tudo, Angie! – Emily deu uma gargalhada.

Saí correndo para a sala e nem deu tempo de esperar a Emily me alcançar. Tentei falar mais alto que a mamãe estava quase chegando e, quando finalmente fui ouvida, ficaram todos parados no mesmo lugar. Alex e tia Kate com o dedo apontado na cara uma da outra, Tommy e Luca tentando prender na parede uma faixa feita à mão, Rosa bradando uma frigideira e perguntando donde estava a baña, papai sentado em uma poltrona olhando a confusão com um sorriso de quem estava tendo a maior diversão do mundo. Tudo revirado, tudo fora do lugar, nem um prato de comida à vista, até que a mamãe abriu a porta e ficamos todos parados de susto, olhando pra ela, e ela parada assustada e olhando pra gente.

-Parabéns pra você... – Fred começou a puxar, e de repente todos o acompanharam.

Uma merda. Não sou de falar muito palavrão, mas foi UMA MERDA! Ainda assim, a mamãe começou a chorar. Ela chora muito e sempre.

-Ah, que coisa mais linda! Amo vocês! – Ela disse, enquanto abraçava todo mundo na sala, até chegar a mim. – Próxima festa surpresa, você organiza, Angie? Só você pra dar jeito nesse monte de gente doida.

É. Não uso rosa nem sapatos de salto, mas acho que a mamãe me conhece um pouco, sim.

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Hoje Malu faz 47 aninhos! Passem no grupo Realidades Paralelas da Mari para fazer seu desejo de aniversário para ela!



O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora